quarta-feira, 25 de junho de 2008

“Nas Terras do Bem-Virá” (ou “Nas Terras do Maldizer”?)

Escrito por Josi Mendes
O documentário “Nas Terras do Bem-Virá” explora a realidade da região amazônica no meio rural, abordando uma infinidade de questões polêmicas, como: os conflitos agrários, o bandoleirismo, a “caça às bruxas” promovida contra os militantes dos Direitos Humanos e de movimentos sociais – a exemplo da missionária Dorothy Stang – a grilagem de terras, o trabalho escravo, etc.
Sem abusar de clichês ou “endeusar” seus “personagens” (personagens esses feitos de carne, osso e, principalmente, sonhos), o longa metragem mostra a trajetória de trabalhadores que nutrem o sonho de chegar na terra do “bem-virá”, a Amazônia, e fazer dela seu sustento e sua morada. Entretanto, quando finalmente chegam, se deparam com a desilusão em face da falta de um trabalho digno e bem remunerado.
O filme vale-se de histórias reais de ex-trabalhadores escravos resgatados pela Delegacia Regional do Trabalho – DRT, bem como relatos daqueles que morreram tentando fugir e dos que tentaram denunciar o tratamento desumano que lhes foi dado pelo empregador.
Além disso, o diretor não se escusou de mostrar o funcionamento do círculo de corrupção e cooptação de trabalhadores a serem levados para as fazendas.
O caso do assassinato de Dorothy Stang, também é tratadono documentário. A missionária, que se contrapôs aos interesses de grandes latifundiários, lutou pela implantação e permanência de um Projeto de Desenvolvimento Sustentável - PDS para que famílias de agricultores em Anapu pudessem garantir sua subsistência com a utilização sustentável dos recursos naturais.
O descaso do Estado com toda essa realidade problemática da região é evidenciada com o julgamento do Tribunal do Júri do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, no mês de maio de 2008, no qual o Júri Popular absolveu um possível mandante de tal homicídio. Tanto que o lançamento do documentário foi reservado especialmente à época do primeiro julgamento dos acusados, entre 22 e 24 de novembro de 2007, pelo assassinato da irmã Dorothy no Tribunal para promover a mobilização social de entidades de direitos humanos, movimentos sociais e demais entes da sociedade civil organizada.
Há ainda uma interessante abordagem sobre o Massacre de Eldorado de Carajás, o confronto de militantes do Movimento de trabalhadores rurais sem terra com a polícia do Estado do Pará em 1996. Revelando, para quem ainda acreditava na “versão” contada pelos policiais participantes do massacre, que houve uma manipulação da mídia ao editar o vídeo que gravou as imagens do massacre. Chega-se à conclusão da ocorrência de verdadeiro “ataque” promovido pela Polícia aos militantes do MST, o que gerou revide por conseguinte, as mortes.
Tatiana Polastri e Alexandre Rampazzo, apesar de viverem em uma realidade completamente diferente, ousaram mostrar algo que estava fora de tudo aquilo que conheciam, fazendo com que se entenda que os problemas do campo na região Norte e Nordeste estão fincados em uma estrutura macro que perpassa pela “evolução” das políticas de desenvolvimento e ocupação criadas Amazônia da década de 70 até hoje. Tais políticas foram determinantes para a instalação do que poderia se denominar de “caos social” instalado no campo da região amazônica.
O documentário, ao mesclar imagens “fortes” com os depoimentos enraizados de sentimentos verdadeiros de seus personagens, provoca sensações de indignação, repúdio, espanto a quem assiste, sobretudo aqueles que moram em centros urbanos e estão um tanto distanciados dessa realidade.
O grande trunfo da dupla de diretores foi de mostrar cada tema do documentário com a divergência de opiniões dos agentes diretamente ligados à temática. Como por exemplo, a justificativa de grandes fazendeiros para a manutenção de seus latifundiários e a utilização de trabalho escravo em suas propriedades ultrapassa o cúmulo do risível à perplexidade.
Longe de ser mais um documentário para causar “choque” e logo cair no esquecimento, este documentário parece ter o intuito de uma propor uma reflexão mais profunda da estrutura que sustenta essa situação desses problemas sociais no meio rural, do que análise artificial dos efeitos desses problemas sociais no meio rural.

The Corporation e as veias abertas na aldeia global

Escrito por Diego Santos
A discussão sobre uma possível reificação humana, iniciada com a revolução industrial, debatida por grandes intelectuais - de Chaplin a José Saramago –, até hoje encontra espaço na sociedade. Isso porque, a possível mecanização das relações e a subjugação do homem em face do capital, ainda são temas recorrentes e se adensam à medida que a artificialização high-tech avança.
Mark Achbar e Jennifer Abbout, no documentário The Corporation, também trabalham nessa perspectiva crítica em relação à situação humana e o capital. Diria mais, na verdade mergulham profundamente no impacto que tal relação tem sobre a Terra.
No entanto, em The Corporation, numa ousada análise, retira-se o foco do homem e sua objetificação e joga-se para cima das corporações, que, ironicamente, estariam sofrendo um processo inverso: de “humanização”. Relata-se uma espécie de concessão de vida às benditas corporações (Frankstein?) e, reflexivamente, acaba-se retratando a situação humana de objeto manipulável por interesses individuais, como mera massa de manobra.
Cabe aqui logo se fazer a ponderação de que, quando se fala em “humanização” da corporação, não se intui dizer que ela se torna mais humanas, (mais preocupada com a sociedade). Na verdade, no contexto do documentário, humanizar é usado para afirmar que, paulatinamente, as corporações estão assumindo caráter de organismos vivos, prestes a alçar vôos, independentemente de quem está no seu comando. Como afirma o jornalista Tiago Soares: “Por conta disso, apesar das posições individuais de seus fundadores, e mesmo após a morte destes, uma corporação segue em sua existência, operando como um ‘organismo’ autônomo em busca de um objetivo bastante específico - o lucro”.
Achbar e Abbout iniciam a argumentação a partir de uma contextualização histórica de corporação, mostrando como, inicialmente, ela estava incumbida de solucionar certos problemas da vida na urbe e, posteriormente, subverteu essa premissa dando lugar aos imperativos do interesse empresarial.
A partir daí, verifica-se uma chuva de exemplos, colagens de vídeos, propagandas, casos reais, depoimentos, que visam a comprovar a tentativa megalomaníaca das corporações de terem o controle sobre todas as esferas da vida pessoal, seja induzindo consumidores, seja construindo verdades e crenças, seja intervindo em questões políticas de ordem global (vide o trecho do filme em que se mostra a reunião de autoridades mundiais e os grandes empresários).
A corporação intui, com isso, resvalar seus interesses próprios, ou seja, o documentário mostra a crueldade de submeter o mundo à vontade de poucos.
Aqui é inevitável não fazer um paralelo ao ideário habermasiano que, em “Mudança Estrutural na Esfera Pública”, narra a invasão do senso de público pelas opiniões e valores privados. Partindo desse pressuposto, Habermas, enumera uma série de instrumentos que são utilizados, como a pesquisa de opinião, para se manipular a “suposta opinião publica” e, assim, se criar uma condição favorável à aclamação da vontade dessa classe ascendente na revolução burguesa.
Em suma, os manipuladores são as corporações, que usam de sua influência midiática, política e propagandística para criar uma realidade onírica (vide a metáfora ácida no documentário quando se mostra a vila da Disney) e assim manter a população do lado “certo” da opinião e escolha, numa aclamação dos valores do interesse burguês (corporativo).
A ironia prossegue ao mostrar relatos de donos de empresas declarando seu descaso por questões essencias, como a condição degradante de trabalho a qual algumas corporações submetem seus funcionários ou a questão ambiental. A exemplo disso temos a esdrúxula conversa entre Michel Moore e o dono da Nike, que nunca conheceu suas fábricas na Indonésia e nem fazia questão de visitar o país, preferindo assistir ao campeonato de tênis australiano. Ou o caso da fábrica de roupas que revestia parte de suas vendas a causas sociais nos EUA e, no entanto, mantinha mão de obras infantil em suas fábricas na América Central.
Nem a mídia passa ilesa pelos olhares incisivos dos diretores que, desmistificado-se a idéia de portadora da verdade e de fiel representante do ideário democrático, é retratada ora como instrumento da alienação das massas (exemplo: propaganda usada para vender produtos a crianças), ora como impotente arma de denúncia em face dos interesses das corporações (exemplo: caso FOX e MONSANTO), fazendo-se questionar até a alcunha de 4° poder.
Aqui há um forte paralelo com Giovani Sartori, pensador italiano que analisa a degeneração da simbolização humana à medida que cresce a sociedade essencialmente televisiva.
Sartori, afirma que a TV, por não estimular a criticidade humana, acaba por nos transformar em molóides, passivos a informação que nos é incutida. Dessa forma, seriamos alvos fáceis para a propaganda corporativa (subentenda-se manipulação corporativa).
Toda essa caracterização negativa do ente “corporação” é levada a radicalização quando se busca traçar um perfil psicológico das corporações, o que é uma contundente crítica a essa tentativa de personificação das corporações (as ditas pessoas jurídicas).
Nesse perfil, chega-se a conclusão que as corporações são psicopatas, incapazes de sentirem remorso, pena, culpa ou a crueldade de suas ações, tudo claramente ilustrado no documentário com uma sucessiva colagem de vídeos.
Resumindo, The Corporation é um documentário que esteticamente se vale da colagem e da ironia para aprofundar discussões sobre a contemporaneidade, na qual o mundo do sistema (usando os termos de Jürgen Habermas) se utiliza de todas as estratégias possíveis para sufocar o mundo da vida, mesmo que isso custe o cerceamento do livre pensar. Corporation joga sal nas veias abertas da dita “aldeia global”.