terça-feira, 16 de outubro de 2007

Fahrenheit 451 e a redenção humana através do saber

Escrito por
Diego Santos
“O que seria da sua vida se você não tivesse o direito de ler?”.

Ray Bradbury acredita que, em face de condição tão ingrata, estaríamos fadados a um futuro marcado pelo culto à ignorância televisiva e dominado por um Estado totalitário que, na busca de ordem social, promoveria a homogeneização do comportamento e do pensamento dos “cidadãos”, que por sua vez, viveriam supostamente felizes como marionetes inertes e perdidas em seus desvarios de consumo, futilidade e obediência.
Bradbury descreve esse seu ideário de futuro, que na verdade é regresso à “Idade das Trevas”, em seu livro Fahrenheit 451, o qual, treze anos depois de seu lançamento, foi levado às telas do cinema pelas mãos do renomado diretor francês François Truffaut.
O filme de Truffaut, que manteve o mesmo título do livro, é celebrado por alguns como a maior ficção científica já realizada - talvez mero exagero dos entusiastas pela genialidade desse diretor - mas o fato é que Fahrenheit 451 (desta vez o filme e não o livro) consegue submergir o telespectador em uma aura de paranóia e loucura futurista na qual, vez ou outra, somos capazes de visualizar nossa própria sociedade contemporânea que, cada vez mais, entrega os livros ao pó secular.
Truffaut adaptou a história de Bradbury valendo-se da trama de suspense (alguns críticos, inclusive, conseguem ver aí uma grande referência e homenagem a Alfred Hitchcock) que, uma vez aliada à trilha sonora arrebatadora de Bernard Hermman (compositor de trilhas para Hitchcock) e a um cenário surreal/lisérgico, permite contar a história de Montag, um funcionário do corpo de bombeiros responsável, nessa realidade futurista, pela incineração de livros.
Sim, há essa subversão da função desses profissionais que, em vez de apagarem incêndios, acabam por promovê-los. Isso é bem explicitado na cena em que um garoto visualiza o carro dos bombeiros e diz algo como: “Olha os bombeiros, vamos ver incêndios”. Em inglês, a metáfora é mais evidente, pois bombeiro é fireman, que, numa tosca tradução literal, significa homem do fogo.
Aqui se apresenta o cerne do longa: vive-se sob a égide de um Estado Totalitário que, por meio do aparato legal, proíbe a leitura dos “cidadãos” sob o argumento de que ler traria desestabilidade social, além de promover a desigualdade, bem como o sofrimento das pessoas. Como explica o chefe do corpo de bombeiro em determinada cena: “Quem lê Aristóteles acaba se sentindo superior aos demais que não leram. Por isso ler é perigoso, pois todos devemos ser iguais”.Ou seja, sob um pretenso discurso de democracia e igualdade, esconde-se a defesa da homogeneidade humana sob o signo da ignorância e da inércia social.
Em suma, a realidade construída por Truffaut pode ser encarada como um grande ataque ao Estado totalitário que, ao intervir em todos os meandros da vida das pessoas, torna-as cativas e alheias à realidade em que vivem. Além de permitir a legitimação da perseguição às minorias – leitores, no caso do filme – relutantes em escapar a esse universalismo comportamental instituído.
Que venham à caça as bruxas ou, melhor dizendo, o abatimento dos elementos incômodos para o “bem estar” e “felicidade” da raça! (Qualquer associação ao nazismo não é mera coincidência).
Mas, além de uma obra politizada, o cineasta francês constrói uma legítima ode aos livros, enaltecendo a leitura como instrumento de libertação humana, pois somente através dela que se abandona a cegueira e se toma ciência do mundo. A história de Montag retrata bem essa situação, afinal, ele passa de trabalhador obediente ao sistema a pária intelectualizado, sendo obrigado a viver à margem da sociedade (terra dos homens-livro) para encontrar a felicidade real e abandonar o universo de aparências (algo como o mito da Caverna de Platão, saindo das trevas para a Luz).
A trajetória de Montag nos revela que o intelectual, nessa possível sociedade – ou, até mesmo nessa em que vivemos- é o marginalizado, é o ente subversivo. Algo tão irônico que chega a ser dramático.
Mas, a redenção do protagonista chega ao fim da história. Se até então trabalhara na destruição do acervo intelectual da humanidade, é no desfecho que ele passa a ser defensor do conhecimento, indo viver em uma comunidade onde há tanto amor pela palavra escrita que todos que lá vivem se preocupam em decorar um livro, para preservar intacta a beleza e o saber que esse contém, como se Bradbury e Truffaut estivessem justificando o título desse texto que aqui se faz: a redenção humana só poderia vir através da leitura, ou melhor, do conhecimento.

Outras histórias: Além dessa temática central, Truffaut também trabalha idéias recorrentes nos filmes analisados até então, que são: o individualismo e solidão da sociedade contemporânea, mostrados, seja através da incomunicabilidade existente entre os personagens: se olham pouco, falam mecanicamente uns com os outros (repare nas cenas entre o casal Linda e Montag); seja pela total perda de laços memorialisticos entre eles (não lembram quando se conheceram, como se apaixonaram, como construíram amizades); ou mesmo, pela carência afetiva que sentem, como uma espécie de necessidade emergencial do próximo (cenas em que pessoas se tocam e simulam beijos com os vidros).
Truffaut, por fim, ainda desfere uma crítica à mídia que é pode ser vista ora como mecanismo de alienação das massas, ora como instrumento de dominação estatal.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Deus e o Diabo na terra do Sol: uma obra atemporal

Escrito por Josi Mendes

"Eu parti do texto poético. A origem de Deus e do Diabo é uma língua metafórica, a literatura do cordel. No Nordeste, os cegos, nos circos, nas feiras, nos teatros populares, começam a história cantando: eu vou lhes contar uma história que é de verdade e de imaginação ou então que é de imaginação verdadeira Toda a minha formação foi feita nesse clima. A idéia do filme me veio espontaneamente.”
(Glauber Rocha)

O longa metragem “Deus e o Diabo na terra do Sol” faz parte de um movimento da cinematografia nacional que surgiu no início da década de 60, denominado de “Cinema Novo”, do qual Glauber Rocha foi um dos precursores. Esse movimento, com um discurso crítico e ousado para a época, costuma ser resumido pela expressão “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” e representa uma das melhores épocas da produção cultural do país.
Como “Deus e o Diabo...” foi produzido anteriormente ao golpe militar no Brasil, ainda tratava das temáticas da realidade rural, como seca, fome, miséria, representando a primeira dentre as três fases do movimento: de 1960 a 1964, 1965 a 1967 e de 1968 a 1972.

Forma – Na obra, é evidente a influência de alguns movimentos cinematográficos - como a Nouvelle Vague francesa, que é contemporânea ao Cinema Novo Brasileiro - resultando, inclusive, na incorporação de certos valores estéticos, como as cenas que mesclam improviso e dinamismo. Além disso, o filme vale-se de uma linguagem própria (metafórica) e de uma leitura crítica da realidade.
As influências artísticas da dramaturgia brasileira da época, como o Teatro de Arena de São Paulo e o Teatro do Oprimido de Augusto Boal, também podem ser observadas, a exemplo da preferência por temas que incitem a reflexão sobre a realidade do país, além da escolha por cenas executadas de forma improvisada, com ritmo de peças teatrais e os movimentos típicos dessas encenações.

Conteúdo - O filme narra a saga do sertanejo Manoel (Geraldo Del Rey) e sua mulher Rosa (Yoná Magalhães) que levam uma vida sofrida no sertão brasileiro, terra desolada e marcada pela seca.
Na tentativa de mudar de vida, Manoel pretende partilhar com o Coronel Moraes, o lucro obtido com a venda de algumas cabeças gado, para que, dessa maneira, possa comprar um pedaço de terra. Porém, quando enquanto leva o gado para a cidade, alguns animais morrem, fazendo com que, no momento da partilha, Moraes diga que não vai dar nada ao sertanejo, porque o gado que morreu certamente era do pobre rapaz e o que havia sobrevivido era o seu. Desesperado, Manoel mata o ganancioso homem, volta para casa para buscar Rosa e acaba fugindo com ela, deixando tudo para trás.
Nessa fuga pelo sertão, o casal depara-se com vários seres que permeiam o imaginário sertanejo e, quiçá, o universal, como: São Sebastião (“Deus”) e Corisco (“Diabo”), ambos dominados por várias espécies de fanatismos, resultantes da loucura causada pela miséria, fome e seca do sertão. Até que, em determinado momento, encontram Antônio das Mortes, o “justiceiro” que levará a libertação a todos.
Glauber Rocha conduziu com muita originalidade esse filme, de temática aparentemente simples, ao contar a história de vida de um sertanejo envolvido pela miséria e fome do sertão que, sem qualquer expectativa de vida, fica literalmente entre a cruz e a espada (tão bem metaforizada na cena em que Corisco e Satanás estão assaltando a casa onde se realizava um casamento), entre “Deus” e o “Diabo”, evocando a alienação religiosa e a violência do movimento cangaceiro em que vive o povo do Sertão nordestino.
O fanatismo causado pelas condições adversas do sertão motiva, em todos os personagens, a prática das atitudes mais insanas, desde o sacrifício de inocentes para salvar a alma de pecadores aos atos mais bárbaros para provar masculinidade e coragem. Contudo, o mais interessante disso, é o amoralismo de Glauber ao mostrar que todos são “bons” e “maus” ao mesmo tempo, trabalhando a intensa dualidade do ser humano. Não há mocinhos nem vilões, apenas figuras metafóricas de Deus (como o São Sebastião), do Diabo (o cangaceiro Corisco), o suposto justiceiro Antônio das Mortes (que leva a libertação de todos através da morte) e o povo brasileiro, representado por Manoel, que passa por todas as provações em busca de alguma perspectiva de vida.
A universalidade do tema está na crise social do país, dominado pela pobreza, fome e miséria e descaso do Estado com os problemas sociais, e ainda no relato da história de um entre os milhões de sertanejos que não “vivem” mas “sobrevivem”, adaptando-se a todas as situações e enfrentando as adversidades como pode.
Numa espécie de antropofagia cultural, o cineasta assimila de forma crítica as características do movimento internacional de cinema e as transforma em algo genuinamente brasileiro, ou melhor, regional, ao desenvolver a história no sertão nordestino fazendo referências à Guerra de Canudos e ao Movimento cangaceiro de Lampião, bem como a utilização da literatura de cordel na trilha sonora, valorizando a história e a tradição cultural nordestina.
Por fim, a obra de Glauber Rocha contempla aspectos estéticos e culturais de forma brilhante e atemporal, apesar de fazer parte de um momento específico do Cinema Novo e abordar a temática rural, os problemas sociais abordados - como a pobreza, a miséria, a violência, descaso do Estado e a alienação religiosa - ainda perduram, não só no sertão nordestino, e o povo brasileiro continua “sobrevivendo” como pode às condições adversas da realidade desse país.




segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Dogville e a desumanização da humanidade

Escrito por Diego Santos
Abre-se a cortina.
Estados Unidos. Época da grande depressão americana. Desesperança. Miséria. Cidade bucólica e provinciana acolhe uma fugitiva. Os bons cidadãos recebem-na tão bem que o clássico mito do Fugere Urbem se materializa. A fugitiva vê, no pequeno vilarejo, a chance de encontrar saída para a frieza e para o individualismo que dominam as grandes cidades. Em retribuição a tanta gentileza, passa a prestar pequenos serviços para as boas pessoas da chamada Dogville.
As buscas pela moça se intensificam. Os cidadãos passam a “cobrar” esse adicional de perigo que a presença da intrusa lhes impõe. Dogville crava seus dentes na forasteira. Exploração. Abuso. Prisão. As máscaras caem, a moça torna-se objeto nas mãos de seus benevolentes exploradores. Traições. Individualismo. Pecado. A cidade revela-se aos olhos da intrusa.
Vingança. A cidade morre aos olhos da boa fugitiva e da lua vermelha que ilumina o palco.
Fecha-se a cortina.


Assim pode ser resumido, de maneira bastante superficial, o épico enredo de Dogville - filme dirigido pelo dinamarquês Lars Von Trier - que narra a árida passagem de Grace (Nicole Kidman) por Dogville, uma cidade no Estados Unidos que, como qualquer outra, se mostra um espaço propício para a realização do sonho americano da vida harmônica e puritana em coletividade, mas que, posteriormente, revela-se um império de hostilidade para com o forasteiro, vítima do individualismo e da torpeza de seus “bons cidadãos”.

Forma - A estética empregada nesse longa metragem talvez seja o que, a priori, mas chame a atenção do telespectador. Conhecido por alguns como filme sem cenários, Dogville foi todo realizado em um espaço que visa recriar o ambiente teatral, no qual elementos de cenografia quase não existem. Com exceção da alguns objetos, tudo é representado por meio de marcações no chão do “palco”.
Por exemplo, palavras como “cachorro” e “arbustos”, escritas com tinta branca no chão, sugerem ao público e aos atores que ali estão esses referidos objetos, o que gera, em alguns momentos, cenas um tanto cômicas (como naquelas em que Grace bate no ar simulando bater em portas que não existem), bem como potencializam o caráter grotesco de certas cenas (pela ausência de paredes, quando Grace é estuprada pela primeira vez, todos os outro personagens parecem indiferentes ou alheios ao sofrimento da personagem, justamente por não haver nada que escondesse aquele crime, pareciam testemunhas condescendentes com o abuso).
Essa referência ao teatro não se limita somente as questões da estética dos cenários, a própria forma como a história é dividida (em capítulos e com um prólogo) e as técnicas de iluminação, também reforçam essa semelhança. Além disso, esse filme recebeu bastante influência do teatro épico de Bertolt Brecht, seja pelo distanciamento que se cria entre atores e o público, o que permite uma análise mais crítica e menos emocional do tema tratado; seja pela abordagem crítica dos conflitos sociais; ou também, pela presença de um narrador e da estrutura de prólogo, que nos dá certas orientações sobre o filme.
O que Brecht intuía com seu teatro era permitir uma reflexão crítica sobre a situação apresentada em sua obra, sempre remetendo a idéia de que aquilo era ficcional e, por isso, não devíamos nos deixar levar por sentimentalismos e análises subjetivas, o que comprometeria nossa complexificação do tema, ou seja, ele propunha uma arte engajada, que não servisse para embarcar os telespectadores em ilusões e misticismos, mas sim que permitisse desmistificar sua realidade, na construção de uma crítica social.
Essa crítica social faz-se presente no filme de Lars na desconstrução da imagem idealizada e ilusória que temos sobre a perfeição da sociedade americana, que seria a terra das oportunidades e da ascensão pessoal. Ele quer mostra ao telespectador, sem ilusões ou efeitos especias, assim como Brecht, toda a corrupção de valores e o individualismo da alma humana. É com uma certa crueza, e até, crueldade que ele acaba por instigar/provocar o telespectador, dando um soco no estômago da sociedade contemporânea.
Essa busca pelo não ilusionismo do cinema remete a um estilo cinematográfico criado pelo próprio Lars, em conjunto com o cineasta Thomas Vinterberg, chamado Dogma 95. Contudo, esse filme não segue a risca os paradigmas do Dogma, não sendo classificado, embora alguns assim o pensem, como filme dessa escola. Por exemplo, o Dogma obriga os filmes a não terem passagens temporais, a não usar iluminação artificial, o que acontece em Dogville.

Conteúdo - E, em meio a essa mistura de teatro e literatura, ficção e crítica à realidade, que de se constrói em Dogville uma série de alegorias sobre a dominação, o individualismo, a intolerância, ou seja, o mal estar das relações pessoa com pessoa (e pessoa versus pessoa) da sociedade capitalista contemporânea.
A subversão da imagem dos cidadãos de Dogville, que se desnuda a Grace no ato final, revela todo um sistema de artificialidade e aparência da atualidade, na qual se valoriza as máscaras e aquilo que se aparenta no ambiente social. Tanto que todos os habitantes buscam esconder seus ímpetos pecaminosos sob a imagem de “bons cidadãos”, como: nas reuniões onde se diz que todos são iguais e livres na cidade, mas segundos depois, se reprime a opinião de um dos moradores; na cena em que o transportador estupra Grace dizendo que isso era para poder transportá-la em segurança; na inveja mascarada de indiferença que Liz Henson tem em relação a Grace; ou mesmo na metáfora fortíssima que existe no orgulho do cego em jamais admitir que não pode enxergar mais.
Todos agem sob uma premissa de caridade que reforçaria o senso de benevolência dos cidadãos, mas, progressivamente, mostra-se que tudo não passava da busca pela satisfação de interesses pessoais, numa evidente alusão ao embate entre individualismo e vida coletiva.
Vê-se também um profundo ataque à hipocrisia dos cidadãos que, eram tão incapazes de se analisarem enquanto opressores, que nunca viam aquilo que faziam a Grace como algo mal, sempre justificando como: “isso é uma lição ao que ela mesma procurou”, ou “isso é para o bem dela”.
Ainda é possível fazer correlações com o tema de dominação do homem sobre o próprio homem e as relações de poder que se instituem nessas relações, afinal, os “bons cidadãos” passam a explorar Grace justamente porque tomam conhecimento de que tem algo em mãos para subjugá-la (a denúncia da fugitiva à polícia) e, por essa micro esfera de poder que se institui, Grace passa a ser escravizada, num regime de alheamento de seu ser, transformando-se em objeto, inclusive sexual, nas mãos dos habitantes da cidade.
Depreende-se do filme, também, uma crítica aos pensadores e aos intelectuais, afinal, o filósofo local (Thomas Edison Jr.) busca se distanciar do seu locus de pesquisa para poder trabalhar na formulação de conceitos e produção teórica, mas isso acaba fazendo com que não consiga saber como proceder na vida prática (distanciamento entre práxis e a teoria), acabando por ser conivente com a desgraça de Grace, ou seja, o ensinamento teórico, distante da sociedade, acaba por torna-se inócuo.
Em suma, Dogville é uma grande alegoria, ou melhor, palco, que nos leva a situações limites das mazelas humanas, onde a segregação daquilo que me é estranho ou diferente, o moralismo, a hipocrisia, a vingança privada, desfilam sublimes entre a humanidade, que, na verdade, é a legítima “vila dos cachorros”, tanto que não achamos errado que todos sejam mortos ao fim da história, pois nos sentimos vingados pela sôfrega personagem.
Não será isso uma prova da total subversão dos valores morais na contemporaneidade?