domingo, 3 de maio de 2009

Justiça (para quê e para quem?)

Por Josi Mendes

O documentário “Justiça”, de Maria Augusta Ramos, retrata o cotidiano das pessoas que trabalham no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: promotores, defensores públicos, juízes, etc. No entanto, a intenção da diretora é destacar a relação que esses profissionais têm com aqueles que apenas “transitam” pelo Tribunal: os réus, mostrando seus dramas familiares, suas histórias da prisão, bem como o trabalho de defensores públicos indiferentes, promotores inertes e juízes inflexíveis.
Com a câmera precisa, Maria Augusta revela os meandros das estruturas de poder, leia-se também o conservadorismo do Judiciário, perceptível nos pequenos detalhes, desde os corredores do fórum, às disposições das cadeiras. Vê-se o discurso, os códigos, as diferentes linguagens, as posturas distintas, coisas que passam despercebidas e demonstram, sensivelmente, a ideologia que fundamenta a “Justiça” no Brasil.
Não por acaso, a diretora se preocupou em mostrar as realidades distintas, tanto na profissão, quanto na intimidade familiar, entre os profissionais da “Justiça” e os acusados nas prisões superlotadas. Esse contraste implica em uma indagação profunda e preocupante: os profissionais do judiciário têm capacidade de “julgar” a vida dessas pessoas?
Há um considerável distanciamento entre o profissional que aplica a lei e o que cometeu um delito, uma vez que o primeiro julga a partir de sua realidade. Isso se evidencia de forma gritante na área criminal. Por exemplo, se uma pessoa comete um roubo de um produto de pequeno valor e é presa, ela deve ser condenada pois, provavelmente, a mentalidade do juiz é de que o indivíduo cometeu um crime e deve sofrer a sanção cabível para que ocorra a sua reeducação, afinal, é função do Poder Judiciário, através do poder de polícia, reprimi-la. Mais que isso, deixar esse “criminoso” livre pode fazer com que o juiz acabe sendo vítima dessa “criminalidade”.
Nesse sentido, a fala da defensora pública, mostrando sua perplexidade ao escutar um promotor dizer que não estava vendo as pessoas sendo presas e, por isso, estava fazendo muitas “denúncias” de crimes, traduz perfeitamente esse distanciamento entre o judiciário e as pessoas. Ora, se um profissional representante de um órgão responsável por fiscalizar o cumprimento das leis não conhece a realidade das prisões e penitenciárias brasileiras, realmente é um caso grave.
Desse modo, as pessoas viram “autos” ou “processos” que abarrotam as mesas e sinalizam a “criminalidade” crescente no país. A origem humilde, o baixo nível de escolaridade e a região que habitam acabam reforçando um pré-conceito para uma possível tendência à ‘marginalidade’, quando pensávamos ter esquecido a estigmatização e criminalização dos três P’s (preto, pobre e puta), ela ressurge.
Sem querer induzir generalizações sobre o perfil dos profissionais do judiciário, mas considero que apesar do documentário filmar o dia-a-dia desses profissionais, dos réus e suas famílias no Rio de Janeiro, esse recorte certamente pode ser aplicado em muitos estado brasileiros.
Tudo isso não é por acaso, o sistema econômico, político e social que o Poder Judiciário está inserido corrobora e mantêm perfeitamente essa lógica, escamoteando o questionamento: qual é o perfil das pessoas que estão sendo presas e por quais crimes? A resposta é simples, a maioria são pessoas de baixa renda ou sem renda alguma, com baixo nível de escolaridade proveniente de regiões periféricas das grandes cidades que cometem crimes contra o patrimônio.
Percebe-se que o princípio da insignificância desaparece muitas vezes e a maioria das pessoas presas são “ladrões de galinha”, termo utilizado no filme. Para aqueles que roubaram (e ainda roubam) quantias consideráveis dos cofres públicos, em decorrência de cargo político ou poder econômico, há tratamento diferenciado, o que revela uma certa “aplicação seletiva” da lei em nosso país. Qualquer semelhança entre a atualidade e essa descrição não será mera coincidência.
Há, sem dúvida, uma harmonia entre o sistema capitalista neoliberal com a atual situação do Poder Judiciário no Brasil. Por mais que manter uma pessoa na cadeia ou penitenciária seja mais caro do que manter esse mesmo indivíduo em uma escola, a lógica é invertida. É mais oportuno superlotar cadeias do que educar e construir a consciência crítica das pessoas, que, provavelmente, questionarão o sistema posto, visto que a alienação é uma arma eficaz para impedir o acirramento da luta de classes.
Dessa forma, o direito pode servir tanto para a manutenção do status quo, quanto como agente transformador da realidade. O ideal aristotélico de “Justiça” baseado nos princípios de “proporcionalidade” e “equidade”, tão estudados na academia, em poucos minutos do filme são reduzidos a discursos, muito bem exemplificado na sessão solene, que se contrapõe à realidade das prisões superlotadas.
Resta a inquietação: como alcançar o ideal de Justiça tão almejado? Será que isso é possível no sistema econômico, político e social em que vivemos?

saiba mais no site oficial do filme.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

“Nas Terras do Bem-Virá” (ou “Nas Terras do Maldizer”?)

Escrito por Josi Mendes
O documentário “Nas Terras do Bem-Virá” explora a realidade da região amazônica no meio rural, abordando uma infinidade de questões polêmicas, como: os conflitos agrários, o bandoleirismo, a “caça às bruxas” promovida contra os militantes dos Direitos Humanos e de movimentos sociais – a exemplo da missionária Dorothy Stang – a grilagem de terras, o trabalho escravo, etc.
Sem abusar de clichês ou “endeusar” seus “personagens” (personagens esses feitos de carne, osso e, principalmente, sonhos), o longa metragem mostra a trajetória de trabalhadores que nutrem o sonho de chegar na terra do “bem-virá”, a Amazônia, e fazer dela seu sustento e sua morada. Entretanto, quando finalmente chegam, se deparam com a desilusão em face da falta de um trabalho digno e bem remunerado.
O filme vale-se de histórias reais de ex-trabalhadores escravos resgatados pela Delegacia Regional do Trabalho – DRT, bem como relatos daqueles que morreram tentando fugir e dos que tentaram denunciar o tratamento desumano que lhes foi dado pelo empregador.
Além disso, o diretor não se escusou de mostrar o funcionamento do círculo de corrupção e cooptação de trabalhadores a serem levados para as fazendas.
O caso do assassinato de Dorothy Stang, também é tratadono documentário. A missionária, que se contrapôs aos interesses de grandes latifundiários, lutou pela implantação e permanência de um Projeto de Desenvolvimento Sustentável - PDS para que famílias de agricultores em Anapu pudessem garantir sua subsistência com a utilização sustentável dos recursos naturais.
O descaso do Estado com toda essa realidade problemática da região é evidenciada com o julgamento do Tribunal do Júri do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, no mês de maio de 2008, no qual o Júri Popular absolveu um possível mandante de tal homicídio. Tanto que o lançamento do documentário foi reservado especialmente à época do primeiro julgamento dos acusados, entre 22 e 24 de novembro de 2007, pelo assassinato da irmã Dorothy no Tribunal para promover a mobilização social de entidades de direitos humanos, movimentos sociais e demais entes da sociedade civil organizada.
Há ainda uma interessante abordagem sobre o Massacre de Eldorado de Carajás, o confronto de militantes do Movimento de trabalhadores rurais sem terra com a polícia do Estado do Pará em 1996. Revelando, para quem ainda acreditava na “versão” contada pelos policiais participantes do massacre, que houve uma manipulação da mídia ao editar o vídeo que gravou as imagens do massacre. Chega-se à conclusão da ocorrência de verdadeiro “ataque” promovido pela Polícia aos militantes do MST, o que gerou revide por conseguinte, as mortes.
Tatiana Polastri e Alexandre Rampazzo, apesar de viverem em uma realidade completamente diferente, ousaram mostrar algo que estava fora de tudo aquilo que conheciam, fazendo com que se entenda que os problemas do campo na região Norte e Nordeste estão fincados em uma estrutura macro que perpassa pela “evolução” das políticas de desenvolvimento e ocupação criadas Amazônia da década de 70 até hoje. Tais políticas foram determinantes para a instalação do que poderia se denominar de “caos social” instalado no campo da região amazônica.
O documentário, ao mesclar imagens “fortes” com os depoimentos enraizados de sentimentos verdadeiros de seus personagens, provoca sensações de indignação, repúdio, espanto a quem assiste, sobretudo aqueles que moram em centros urbanos e estão um tanto distanciados dessa realidade.
O grande trunfo da dupla de diretores foi de mostrar cada tema do documentário com a divergência de opiniões dos agentes diretamente ligados à temática. Como por exemplo, a justificativa de grandes fazendeiros para a manutenção de seus latifundiários e a utilização de trabalho escravo em suas propriedades ultrapassa o cúmulo do risível à perplexidade.
Longe de ser mais um documentário para causar “choque” e logo cair no esquecimento, este documentário parece ter o intuito de uma propor uma reflexão mais profunda da estrutura que sustenta essa situação desses problemas sociais no meio rural, do que análise artificial dos efeitos desses problemas sociais no meio rural.

The Corporation e as veias abertas na aldeia global

Escrito por Diego Santos
A discussão sobre uma possível reificação humana, iniciada com a revolução industrial, debatida por grandes intelectuais - de Chaplin a José Saramago –, até hoje encontra espaço na sociedade. Isso porque, a possível mecanização das relações e a subjugação do homem em face do capital, ainda são temas recorrentes e se adensam à medida que a artificialização high-tech avança.
Mark Achbar e Jennifer Abbout, no documentário The Corporation, também trabalham nessa perspectiva crítica em relação à situação humana e o capital. Diria mais, na verdade mergulham profundamente no impacto que tal relação tem sobre a Terra.
No entanto, em The Corporation, numa ousada análise, retira-se o foco do homem e sua objetificação e joga-se para cima das corporações, que, ironicamente, estariam sofrendo um processo inverso: de “humanização”. Relata-se uma espécie de concessão de vida às benditas corporações (Frankstein?) e, reflexivamente, acaba-se retratando a situação humana de objeto manipulável por interesses individuais, como mera massa de manobra.
Cabe aqui logo se fazer a ponderação de que, quando se fala em “humanização” da corporação, não se intui dizer que ela se torna mais humanas, (mais preocupada com a sociedade). Na verdade, no contexto do documentário, humanizar é usado para afirmar que, paulatinamente, as corporações estão assumindo caráter de organismos vivos, prestes a alçar vôos, independentemente de quem está no seu comando. Como afirma o jornalista Tiago Soares: “Por conta disso, apesar das posições individuais de seus fundadores, e mesmo após a morte destes, uma corporação segue em sua existência, operando como um ‘organismo’ autônomo em busca de um objetivo bastante específico - o lucro”.
Achbar e Abbout iniciam a argumentação a partir de uma contextualização histórica de corporação, mostrando como, inicialmente, ela estava incumbida de solucionar certos problemas da vida na urbe e, posteriormente, subverteu essa premissa dando lugar aos imperativos do interesse empresarial.
A partir daí, verifica-se uma chuva de exemplos, colagens de vídeos, propagandas, casos reais, depoimentos, que visam a comprovar a tentativa megalomaníaca das corporações de terem o controle sobre todas as esferas da vida pessoal, seja induzindo consumidores, seja construindo verdades e crenças, seja intervindo em questões políticas de ordem global (vide o trecho do filme em que se mostra a reunião de autoridades mundiais e os grandes empresários).
A corporação intui, com isso, resvalar seus interesses próprios, ou seja, o documentário mostra a crueldade de submeter o mundo à vontade de poucos.
Aqui é inevitável não fazer um paralelo ao ideário habermasiano que, em “Mudança Estrutural na Esfera Pública”, narra a invasão do senso de público pelas opiniões e valores privados. Partindo desse pressuposto, Habermas, enumera uma série de instrumentos que são utilizados, como a pesquisa de opinião, para se manipular a “suposta opinião publica” e, assim, se criar uma condição favorável à aclamação da vontade dessa classe ascendente na revolução burguesa.
Em suma, os manipuladores são as corporações, que usam de sua influência midiática, política e propagandística para criar uma realidade onírica (vide a metáfora ácida no documentário quando se mostra a vila da Disney) e assim manter a população do lado “certo” da opinião e escolha, numa aclamação dos valores do interesse burguês (corporativo).
A ironia prossegue ao mostrar relatos de donos de empresas declarando seu descaso por questões essencias, como a condição degradante de trabalho a qual algumas corporações submetem seus funcionários ou a questão ambiental. A exemplo disso temos a esdrúxula conversa entre Michel Moore e o dono da Nike, que nunca conheceu suas fábricas na Indonésia e nem fazia questão de visitar o país, preferindo assistir ao campeonato de tênis australiano. Ou o caso da fábrica de roupas que revestia parte de suas vendas a causas sociais nos EUA e, no entanto, mantinha mão de obras infantil em suas fábricas na América Central.
Nem a mídia passa ilesa pelos olhares incisivos dos diretores que, desmistificado-se a idéia de portadora da verdade e de fiel representante do ideário democrático, é retratada ora como instrumento da alienação das massas (exemplo: propaganda usada para vender produtos a crianças), ora como impotente arma de denúncia em face dos interesses das corporações (exemplo: caso FOX e MONSANTO), fazendo-se questionar até a alcunha de 4° poder.
Aqui há um forte paralelo com Giovani Sartori, pensador italiano que analisa a degeneração da simbolização humana à medida que cresce a sociedade essencialmente televisiva.
Sartori, afirma que a TV, por não estimular a criticidade humana, acaba por nos transformar em molóides, passivos a informação que nos é incutida. Dessa forma, seriamos alvos fáceis para a propaganda corporativa (subentenda-se manipulação corporativa).
Toda essa caracterização negativa do ente “corporação” é levada a radicalização quando se busca traçar um perfil psicológico das corporações, o que é uma contundente crítica a essa tentativa de personificação das corporações (as ditas pessoas jurídicas).
Nesse perfil, chega-se a conclusão que as corporações são psicopatas, incapazes de sentirem remorso, pena, culpa ou a crueldade de suas ações, tudo claramente ilustrado no documentário com uma sucessiva colagem de vídeos.
Resumindo, The Corporation é um documentário que esteticamente se vale da colagem e da ironia para aprofundar discussões sobre a contemporaneidade, na qual o mundo do sistema (usando os termos de Jürgen Habermas) se utiliza de todas as estratégias possíveis para sufocar o mundo da vida, mesmo que isso custe o cerceamento do livre pensar. Corporation joga sal nas veias abertas da dita “aldeia global”.

sábado, 17 de maio de 2008

Os Sonhadores: o resgate do espírito idealista do jovem

Por Josi Mendes

Em “Os Sonhadores”, o cineasta Bernardo Bertolucci apostou na ousadia (uma das marcas de seu trabalho) para homenagear uma conjuntura histórica desenvolvida na Europa, mas que repercutiu em todo o mundo: o Maio de 1968. O pontapé inicial desse longa foi o livro “The holy innocentes” do escritor norte americano Gilbert Adair, o qual assinou o roteiro do longa metragem.
O contexto histórico reconstituído é a primavera francesa de 1968, na qual ocorreram sucessivas revoltas estudantis na Europa, motivadas, sobretudo, pelo questionamento do sistema capitalista e da sociedade de consumo por ela impulsionada. Diante desse cenário, Bertolucci tenta captar, através dos jovens, o espírito libertário da época, no momento em que as fronteiras políticas, culturais e morais estavam sendo ampliadas.
Sociólogos e filósofos como Jean-Paul Sartre, que estiveram presentes nos acontecimentos, afirmam que aquele foi um ano confuso e que ninguém sabia exatamente o que queria, mesmo assim, houveram importantes conquistas dos movimentos organizados para a efetivação de direitos humanos por meio de pressão à Organização das Nações Unidas (ONU).
O frisson causado pelo filme certamente não se dá, unicamente, por essa abordagem histórica, mas também em razão das cenas de nudez, sexo e incesto espalhadas por todo o longa. Entretanto, a sutileza para mostrá-las é utilizada com maestria pelo diretor. A arte, do cenário à trilha sonora, atores, etc. demonstram sua imensa sensibilidade.
O enredo gira em torno do encontro do jovem Matthew (Michael Pitt) com os irmãos Isabelle (Eva Green) e Theo (Louis Garrel). Matthew é um estudante norte-americano que faz intercâmbio na universidade de Paris e é amante do cinema, isso permite que conheça Isabelle e Theo, irmãos gêmeos que vivem uma relação incestuosa. Logo os três tornam-se amigos, dividindo além da paixão pela 7ª arte, relacionamentos e experiências, principalmente quando têm a oportunidade de ficarem sozinhos por um mês no apartamento dos pais dos gêmeos.
Os três são cinéfilos convictos e testam seus conhecimentos através de joguinhos sexuais ao mesmo tempo em que debatem as suas diferentes concepções políticas, de um lado um libertário e do outro um conservador.
Matthew é o personagem “perturbador da ordem” do mundinho de cinefilia e incesto construído pelos gêmeos, visto que a todo momento contesta as concepções políticas e morais dos irmãos.
A cena na qual Matt contesta o idealismo político de Théo é estratégica para “perturbar” a postura de quem se intitula como jovem revolucionário, pois nesta cena Theo enaltece o povo chinês e sua devoção cega ao livro vermelho de Mao Tsé Tung, o qual deveria guiá-los para a revolução. No entanto, Matt questiona essa postura em face da obsessão cega do povo à doutrina de Mao Tsé Tung. Além disso, ele afirma que: se Theo acreditasse realmente na revolução, estaria nas ruas promovendo-a junto aos outros jovens e não trancando em seu quarto discutindo cinema enquanto bebe vinhos caros. É um bom estímulo para a reflexão sobre a contradição nos discursos, a distância entre reflexão e ação, e conseqüentemente a ineficiência na promoção da práxis nos moldes marxistas!
Os tabus morais com relação ao sexo e valores familiares também são questionados por Matt que, ao se deparar com o relacionamento incestuoso de Isabelle e Théo, acredita que eles possuem desvios psicológicos, sendo capazes de crer que possuem uma ligação inseparável que nada nem ninguém poderia desfazer. Todavia, apesar das divergências, Matt acaba entrando no jogo dos irmãos, seja por estratégia, seja por vontade de quebrar seus valores e tabus, assim se forma o triângulo amoroso da trama, algo que mudará a todos.
As diferenças culturais entre a visão conservadora norte americana e a libertária européia também são postas em xeque a todo tempo. Sem supervalorizar nenhuma, o diretor simplesmente mostrar as fragilidades e fortalezas de ambas.
O filme ainda traz à tona dois tipos de sonhos típicos dos jovens, aqueles produzidos dentro do cinema - inspirados e idealizados pelos filmes - e os produzidos nas ruas - conseqüência do anseio por mudanças sociais, culturais, políticas, etc. Daí o título, tão preciso e perfeito para aquilo que o filme deseja mostrar: os sonhos revolucionários dos jovens e seus comportamentos.
Mesclando esse cenário político com os anseios e desejos dos jovens daquela época, o diretor consegue fazer um filme transgressor, polêmico, poético e envolvente, tratando de temas incendiários com muita naturalidade, além de que faz uma homenagem ao cinema, reforçando-a, a todo o tempo, com passagens de filmes clássicos.

terça-feira, 6 de maio de 2008

"Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá": um caleidoscópio da realidade contemporânea

Escrito por Diego Santos
O mito da aldeia global - massificado como a idéia de redenção advinda da quebra de barreiras e superação das diferenças entre os diversos Estados - mostra sua faceta cruel (ou real) no documentário “Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá” que, ao se valer da perspectiva crítica do geógrafo Milton Santos, revela a América Latina globalizada, ou melhor dizendo, a América Latina subjugada pelo modelo de globalização vigente.
Sílvio Tendler, ao conceber a idéia desse documentário, deve ter objetivado lançar mão de todas as suas angústias sobre o confuso mundo contemporâneo, pois o resultado que obteve foi um grande quebra-cabeça de imagens, dados, frases, sons, opiniões e críticas socias que submergem o telespectador numa profusão de reflexões sobre tudo e todos ao mesmo tempo, quase que numa paranóia delirante sobre a contemporaneidade, o que é reforçado pela forma de montagem do enredo: fragmentária, dividida em mini-capítulos.
É essa estética fragmentada - que acaba funcionando como metáfora para o próprio panorama global, mergulhado em seu caos de construções e desconstruções instantâneas (entre a completude e a pulverização) – que permite mostrar a vida como ela: a fome no mundo, a rebeldia latino-americana, a exploração humana, a escassez de água, o multiculturalismo, o papel da mídia na atualidade, o hibridismo cultural, entre muitas outras questões, todas encadeadas e costuradas por uma linha reflexiva sobre a prática predatória imposta pela globalização.
No entanto, apesar do que fora até então escrito nos induzir a idéia de possível irracionalidade do filme, “Encontro com Milton Santos...” é uma crítica contundente e bastante racional sobre o mito da aldeia global, que, para além da perspectiva utópica de universo sem fronteiras ou restrições, mostra-se restrito (ou mesmo benevolente) a poucos afortunados e atroz para muitos, sobretudo no que concerne aos países pobres, vítimas, nas palavras do próprio Milton, do globalitarismo.
Ou seja, Sílvio orquestra toda essa miscelânea de dados de tal forma que o resultado final é uma perspectiva geral sobre uma globalização “vista com olhos latino-americanos”, como o próprio título sugere. E, contrariamente ao que se pode pensar, ao fim se tem uma perspectiva esperançosa para o caos social, relevando o grande trunfo do diretor, que, para além de fáceis críticas à realidade, mostra o que pode ser feito e o que vem sendo tentado para alcançamos aquilo que se chama no filme de terceiro mundo, ou seja, o mundo que pode vir a ser.

E o Globalitarismo?

Globalitarismo é um termo cunhado no contexto do próprio documentário que tenciona expressar a predação que o processo de globalização acabou por impor à América Latina e a demais países pobres/em desenvolvimento, sobretudo em função de ter contribuído para a subjugação e dependência dessas nações em relação às grandes economias.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Fahrenheit 451 e a redenção humana através do saber

Escrito por
Diego Santos
“O que seria da sua vida se você não tivesse o direito de ler?”.

Ray Bradbury acredita que, em face de condição tão ingrata, estaríamos fadados a um futuro marcado pelo culto à ignorância televisiva e dominado por um Estado totalitário que, na busca de ordem social, promoveria a homogeneização do comportamento e do pensamento dos “cidadãos”, que por sua vez, viveriam supostamente felizes como marionetes inertes e perdidas em seus desvarios de consumo, futilidade e obediência.
Bradbury descreve esse seu ideário de futuro, que na verdade é regresso à “Idade das Trevas”, em seu livro Fahrenheit 451, o qual, treze anos depois de seu lançamento, foi levado às telas do cinema pelas mãos do renomado diretor francês François Truffaut.
O filme de Truffaut, que manteve o mesmo título do livro, é celebrado por alguns como a maior ficção científica já realizada - talvez mero exagero dos entusiastas pela genialidade desse diretor - mas o fato é que Fahrenheit 451 (desta vez o filme e não o livro) consegue submergir o telespectador em uma aura de paranóia e loucura futurista na qual, vez ou outra, somos capazes de visualizar nossa própria sociedade contemporânea que, cada vez mais, entrega os livros ao pó secular.
Truffaut adaptou a história de Bradbury valendo-se da trama de suspense (alguns críticos, inclusive, conseguem ver aí uma grande referência e homenagem a Alfred Hitchcock) que, uma vez aliada à trilha sonora arrebatadora de Bernard Hermman (compositor de trilhas para Hitchcock) e a um cenário surreal/lisérgico, permite contar a história de Montag, um funcionário do corpo de bombeiros responsável, nessa realidade futurista, pela incineração de livros.
Sim, há essa subversão da função desses profissionais que, em vez de apagarem incêndios, acabam por promovê-los. Isso é bem explicitado na cena em que um garoto visualiza o carro dos bombeiros e diz algo como: “Olha os bombeiros, vamos ver incêndios”. Em inglês, a metáfora é mais evidente, pois bombeiro é fireman, que, numa tosca tradução literal, significa homem do fogo.
Aqui se apresenta o cerne do longa: vive-se sob a égide de um Estado Totalitário que, por meio do aparato legal, proíbe a leitura dos “cidadãos” sob o argumento de que ler traria desestabilidade social, além de promover a desigualdade, bem como o sofrimento das pessoas. Como explica o chefe do corpo de bombeiro em determinada cena: “Quem lê Aristóteles acaba se sentindo superior aos demais que não leram. Por isso ler é perigoso, pois todos devemos ser iguais”.Ou seja, sob um pretenso discurso de democracia e igualdade, esconde-se a defesa da homogeneidade humana sob o signo da ignorância e da inércia social.
Em suma, a realidade construída por Truffaut pode ser encarada como um grande ataque ao Estado totalitário que, ao intervir em todos os meandros da vida das pessoas, torna-as cativas e alheias à realidade em que vivem. Além de permitir a legitimação da perseguição às minorias – leitores, no caso do filme – relutantes em escapar a esse universalismo comportamental instituído.
Que venham à caça as bruxas ou, melhor dizendo, o abatimento dos elementos incômodos para o “bem estar” e “felicidade” da raça! (Qualquer associação ao nazismo não é mera coincidência).
Mas, além de uma obra politizada, o cineasta francês constrói uma legítima ode aos livros, enaltecendo a leitura como instrumento de libertação humana, pois somente através dela que se abandona a cegueira e se toma ciência do mundo. A história de Montag retrata bem essa situação, afinal, ele passa de trabalhador obediente ao sistema a pária intelectualizado, sendo obrigado a viver à margem da sociedade (terra dos homens-livro) para encontrar a felicidade real e abandonar o universo de aparências (algo como o mito da Caverna de Platão, saindo das trevas para a Luz).
A trajetória de Montag nos revela que o intelectual, nessa possível sociedade – ou, até mesmo nessa em que vivemos- é o marginalizado, é o ente subversivo. Algo tão irônico que chega a ser dramático.
Mas, a redenção do protagonista chega ao fim da história. Se até então trabalhara na destruição do acervo intelectual da humanidade, é no desfecho que ele passa a ser defensor do conhecimento, indo viver em uma comunidade onde há tanto amor pela palavra escrita que todos que lá vivem se preocupam em decorar um livro, para preservar intacta a beleza e o saber que esse contém, como se Bradbury e Truffaut estivessem justificando o título desse texto que aqui se faz: a redenção humana só poderia vir através da leitura, ou melhor, do conhecimento.

Outras histórias: Além dessa temática central, Truffaut também trabalha idéias recorrentes nos filmes analisados até então, que são: o individualismo e solidão da sociedade contemporânea, mostrados, seja através da incomunicabilidade existente entre os personagens: se olham pouco, falam mecanicamente uns com os outros (repare nas cenas entre o casal Linda e Montag); seja pela total perda de laços memorialisticos entre eles (não lembram quando se conheceram, como se apaixonaram, como construíram amizades); ou mesmo, pela carência afetiva que sentem, como uma espécie de necessidade emergencial do próximo (cenas em que pessoas se tocam e simulam beijos com os vidros).
Truffaut, por fim, ainda desfere uma crítica à mídia que é pode ser vista ora como mecanismo de alienação das massas, ora como instrumento de dominação estatal.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Deus e o Diabo na terra do Sol: uma obra atemporal

Escrito por Josi Mendes

"Eu parti do texto poético. A origem de Deus e do Diabo é uma língua metafórica, a literatura do cordel. No Nordeste, os cegos, nos circos, nas feiras, nos teatros populares, começam a história cantando: eu vou lhes contar uma história que é de verdade e de imaginação ou então que é de imaginação verdadeira Toda a minha formação foi feita nesse clima. A idéia do filme me veio espontaneamente.”
(Glauber Rocha)

O longa metragem “Deus e o Diabo na terra do Sol” faz parte de um movimento da cinematografia nacional que surgiu no início da década de 60, denominado de “Cinema Novo”, do qual Glauber Rocha foi um dos precursores. Esse movimento, com um discurso crítico e ousado para a época, costuma ser resumido pela expressão “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” e representa uma das melhores épocas da produção cultural do país.
Como “Deus e o Diabo...” foi produzido anteriormente ao golpe militar no Brasil, ainda tratava das temáticas da realidade rural, como seca, fome, miséria, representando a primeira dentre as três fases do movimento: de 1960 a 1964, 1965 a 1967 e de 1968 a 1972.

Forma – Na obra, é evidente a influência de alguns movimentos cinematográficos - como a Nouvelle Vague francesa, que é contemporânea ao Cinema Novo Brasileiro - resultando, inclusive, na incorporação de certos valores estéticos, como as cenas que mesclam improviso e dinamismo. Além disso, o filme vale-se de uma linguagem própria (metafórica) e de uma leitura crítica da realidade.
As influências artísticas da dramaturgia brasileira da época, como o Teatro de Arena de São Paulo e o Teatro do Oprimido de Augusto Boal, também podem ser observadas, a exemplo da preferência por temas que incitem a reflexão sobre a realidade do país, além da escolha por cenas executadas de forma improvisada, com ritmo de peças teatrais e os movimentos típicos dessas encenações.

Conteúdo - O filme narra a saga do sertanejo Manoel (Geraldo Del Rey) e sua mulher Rosa (Yoná Magalhães) que levam uma vida sofrida no sertão brasileiro, terra desolada e marcada pela seca.
Na tentativa de mudar de vida, Manoel pretende partilhar com o Coronel Moraes, o lucro obtido com a venda de algumas cabeças gado, para que, dessa maneira, possa comprar um pedaço de terra. Porém, quando enquanto leva o gado para a cidade, alguns animais morrem, fazendo com que, no momento da partilha, Moraes diga que não vai dar nada ao sertanejo, porque o gado que morreu certamente era do pobre rapaz e o que havia sobrevivido era o seu. Desesperado, Manoel mata o ganancioso homem, volta para casa para buscar Rosa e acaba fugindo com ela, deixando tudo para trás.
Nessa fuga pelo sertão, o casal depara-se com vários seres que permeiam o imaginário sertanejo e, quiçá, o universal, como: São Sebastião (“Deus”) e Corisco (“Diabo”), ambos dominados por várias espécies de fanatismos, resultantes da loucura causada pela miséria, fome e seca do sertão. Até que, em determinado momento, encontram Antônio das Mortes, o “justiceiro” que levará a libertação a todos.
Glauber Rocha conduziu com muita originalidade esse filme, de temática aparentemente simples, ao contar a história de vida de um sertanejo envolvido pela miséria e fome do sertão que, sem qualquer expectativa de vida, fica literalmente entre a cruz e a espada (tão bem metaforizada na cena em que Corisco e Satanás estão assaltando a casa onde se realizava um casamento), entre “Deus” e o “Diabo”, evocando a alienação religiosa e a violência do movimento cangaceiro em que vive o povo do Sertão nordestino.
O fanatismo causado pelas condições adversas do sertão motiva, em todos os personagens, a prática das atitudes mais insanas, desde o sacrifício de inocentes para salvar a alma de pecadores aos atos mais bárbaros para provar masculinidade e coragem. Contudo, o mais interessante disso, é o amoralismo de Glauber ao mostrar que todos são “bons” e “maus” ao mesmo tempo, trabalhando a intensa dualidade do ser humano. Não há mocinhos nem vilões, apenas figuras metafóricas de Deus (como o São Sebastião), do Diabo (o cangaceiro Corisco), o suposto justiceiro Antônio das Mortes (que leva a libertação de todos através da morte) e o povo brasileiro, representado por Manoel, que passa por todas as provações em busca de alguma perspectiva de vida.
A universalidade do tema está na crise social do país, dominado pela pobreza, fome e miséria e descaso do Estado com os problemas sociais, e ainda no relato da história de um entre os milhões de sertanejos que não “vivem” mas “sobrevivem”, adaptando-se a todas as situações e enfrentando as adversidades como pode.
Numa espécie de antropofagia cultural, o cineasta assimila de forma crítica as características do movimento internacional de cinema e as transforma em algo genuinamente brasileiro, ou melhor, regional, ao desenvolver a história no sertão nordestino fazendo referências à Guerra de Canudos e ao Movimento cangaceiro de Lampião, bem como a utilização da literatura de cordel na trilha sonora, valorizando a história e a tradição cultural nordestina.
Por fim, a obra de Glauber Rocha contempla aspectos estéticos e culturais de forma brilhante e atemporal, apesar de fazer parte de um momento específico do Cinema Novo e abordar a temática rural, os problemas sociais abordados - como a pobreza, a miséria, a violência, descaso do Estado e a alienação religiosa - ainda perduram, não só no sertão nordestino, e o povo brasileiro continua “sobrevivendo” como pode às condições adversas da realidade desse país.