terça-feira, 16 de outubro de 2007

Fahrenheit 451 e a redenção humana através do saber

Escrito por
Diego Santos
“O que seria da sua vida se você não tivesse o direito de ler?”.

Ray Bradbury acredita que, em face de condição tão ingrata, estaríamos fadados a um futuro marcado pelo culto à ignorância televisiva e dominado por um Estado totalitário que, na busca de ordem social, promoveria a homogeneização do comportamento e do pensamento dos “cidadãos”, que por sua vez, viveriam supostamente felizes como marionetes inertes e perdidas em seus desvarios de consumo, futilidade e obediência.
Bradbury descreve esse seu ideário de futuro, que na verdade é regresso à “Idade das Trevas”, em seu livro Fahrenheit 451, o qual, treze anos depois de seu lançamento, foi levado às telas do cinema pelas mãos do renomado diretor francês François Truffaut.
O filme de Truffaut, que manteve o mesmo título do livro, é celebrado por alguns como a maior ficção científica já realizada - talvez mero exagero dos entusiastas pela genialidade desse diretor - mas o fato é que Fahrenheit 451 (desta vez o filme e não o livro) consegue submergir o telespectador em uma aura de paranóia e loucura futurista na qual, vez ou outra, somos capazes de visualizar nossa própria sociedade contemporânea que, cada vez mais, entrega os livros ao pó secular.
Truffaut adaptou a história de Bradbury valendo-se da trama de suspense (alguns críticos, inclusive, conseguem ver aí uma grande referência e homenagem a Alfred Hitchcock) que, uma vez aliada à trilha sonora arrebatadora de Bernard Hermman (compositor de trilhas para Hitchcock) e a um cenário surreal/lisérgico, permite contar a história de Montag, um funcionário do corpo de bombeiros responsável, nessa realidade futurista, pela incineração de livros.
Sim, há essa subversão da função desses profissionais que, em vez de apagarem incêndios, acabam por promovê-los. Isso é bem explicitado na cena em que um garoto visualiza o carro dos bombeiros e diz algo como: “Olha os bombeiros, vamos ver incêndios”. Em inglês, a metáfora é mais evidente, pois bombeiro é fireman, que, numa tosca tradução literal, significa homem do fogo.
Aqui se apresenta o cerne do longa: vive-se sob a égide de um Estado Totalitário que, por meio do aparato legal, proíbe a leitura dos “cidadãos” sob o argumento de que ler traria desestabilidade social, além de promover a desigualdade, bem como o sofrimento das pessoas. Como explica o chefe do corpo de bombeiro em determinada cena: “Quem lê Aristóteles acaba se sentindo superior aos demais que não leram. Por isso ler é perigoso, pois todos devemos ser iguais”.Ou seja, sob um pretenso discurso de democracia e igualdade, esconde-se a defesa da homogeneidade humana sob o signo da ignorância e da inércia social.
Em suma, a realidade construída por Truffaut pode ser encarada como um grande ataque ao Estado totalitário que, ao intervir em todos os meandros da vida das pessoas, torna-as cativas e alheias à realidade em que vivem. Além de permitir a legitimação da perseguição às minorias – leitores, no caso do filme – relutantes em escapar a esse universalismo comportamental instituído.
Que venham à caça as bruxas ou, melhor dizendo, o abatimento dos elementos incômodos para o “bem estar” e “felicidade” da raça! (Qualquer associação ao nazismo não é mera coincidência).
Mas, além de uma obra politizada, o cineasta francês constrói uma legítima ode aos livros, enaltecendo a leitura como instrumento de libertação humana, pois somente através dela que se abandona a cegueira e se toma ciência do mundo. A história de Montag retrata bem essa situação, afinal, ele passa de trabalhador obediente ao sistema a pária intelectualizado, sendo obrigado a viver à margem da sociedade (terra dos homens-livro) para encontrar a felicidade real e abandonar o universo de aparências (algo como o mito da Caverna de Platão, saindo das trevas para a Luz).
A trajetória de Montag nos revela que o intelectual, nessa possível sociedade – ou, até mesmo nessa em que vivemos- é o marginalizado, é o ente subversivo. Algo tão irônico que chega a ser dramático.
Mas, a redenção do protagonista chega ao fim da história. Se até então trabalhara na destruição do acervo intelectual da humanidade, é no desfecho que ele passa a ser defensor do conhecimento, indo viver em uma comunidade onde há tanto amor pela palavra escrita que todos que lá vivem se preocupam em decorar um livro, para preservar intacta a beleza e o saber que esse contém, como se Bradbury e Truffaut estivessem justificando o título desse texto que aqui se faz: a redenção humana só poderia vir através da leitura, ou melhor, do conhecimento.

Outras histórias: Além dessa temática central, Truffaut também trabalha idéias recorrentes nos filmes analisados até então, que são: o individualismo e solidão da sociedade contemporânea, mostrados, seja através da incomunicabilidade existente entre os personagens: se olham pouco, falam mecanicamente uns com os outros (repare nas cenas entre o casal Linda e Montag); seja pela total perda de laços memorialisticos entre eles (não lembram quando se conheceram, como se apaixonaram, como construíram amizades); ou mesmo, pela carência afetiva que sentem, como uma espécie de necessidade emergencial do próximo (cenas em que pessoas se tocam e simulam beijos com os vidros).
Truffaut, por fim, ainda desfere uma crítica à mídia que é pode ser vista ora como mecanismo de alienação das massas, ora como instrumento de dominação estatal.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Deus e o Diabo na terra do Sol: uma obra atemporal

Escrito por Josi Mendes

"Eu parti do texto poético. A origem de Deus e do Diabo é uma língua metafórica, a literatura do cordel. No Nordeste, os cegos, nos circos, nas feiras, nos teatros populares, começam a história cantando: eu vou lhes contar uma história que é de verdade e de imaginação ou então que é de imaginação verdadeira Toda a minha formação foi feita nesse clima. A idéia do filme me veio espontaneamente.”
(Glauber Rocha)

O longa metragem “Deus e o Diabo na terra do Sol” faz parte de um movimento da cinematografia nacional que surgiu no início da década de 60, denominado de “Cinema Novo”, do qual Glauber Rocha foi um dos precursores. Esse movimento, com um discurso crítico e ousado para a época, costuma ser resumido pela expressão “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” e representa uma das melhores épocas da produção cultural do país.
Como “Deus e o Diabo...” foi produzido anteriormente ao golpe militar no Brasil, ainda tratava das temáticas da realidade rural, como seca, fome, miséria, representando a primeira dentre as três fases do movimento: de 1960 a 1964, 1965 a 1967 e de 1968 a 1972.

Forma – Na obra, é evidente a influência de alguns movimentos cinematográficos - como a Nouvelle Vague francesa, que é contemporânea ao Cinema Novo Brasileiro - resultando, inclusive, na incorporação de certos valores estéticos, como as cenas que mesclam improviso e dinamismo. Além disso, o filme vale-se de uma linguagem própria (metafórica) e de uma leitura crítica da realidade.
As influências artísticas da dramaturgia brasileira da época, como o Teatro de Arena de São Paulo e o Teatro do Oprimido de Augusto Boal, também podem ser observadas, a exemplo da preferência por temas que incitem a reflexão sobre a realidade do país, além da escolha por cenas executadas de forma improvisada, com ritmo de peças teatrais e os movimentos típicos dessas encenações.

Conteúdo - O filme narra a saga do sertanejo Manoel (Geraldo Del Rey) e sua mulher Rosa (Yoná Magalhães) que levam uma vida sofrida no sertão brasileiro, terra desolada e marcada pela seca.
Na tentativa de mudar de vida, Manoel pretende partilhar com o Coronel Moraes, o lucro obtido com a venda de algumas cabeças gado, para que, dessa maneira, possa comprar um pedaço de terra. Porém, quando enquanto leva o gado para a cidade, alguns animais morrem, fazendo com que, no momento da partilha, Moraes diga que não vai dar nada ao sertanejo, porque o gado que morreu certamente era do pobre rapaz e o que havia sobrevivido era o seu. Desesperado, Manoel mata o ganancioso homem, volta para casa para buscar Rosa e acaba fugindo com ela, deixando tudo para trás.
Nessa fuga pelo sertão, o casal depara-se com vários seres que permeiam o imaginário sertanejo e, quiçá, o universal, como: São Sebastião (“Deus”) e Corisco (“Diabo”), ambos dominados por várias espécies de fanatismos, resultantes da loucura causada pela miséria, fome e seca do sertão. Até que, em determinado momento, encontram Antônio das Mortes, o “justiceiro” que levará a libertação a todos.
Glauber Rocha conduziu com muita originalidade esse filme, de temática aparentemente simples, ao contar a história de vida de um sertanejo envolvido pela miséria e fome do sertão que, sem qualquer expectativa de vida, fica literalmente entre a cruz e a espada (tão bem metaforizada na cena em que Corisco e Satanás estão assaltando a casa onde se realizava um casamento), entre “Deus” e o “Diabo”, evocando a alienação religiosa e a violência do movimento cangaceiro em que vive o povo do Sertão nordestino.
O fanatismo causado pelas condições adversas do sertão motiva, em todos os personagens, a prática das atitudes mais insanas, desde o sacrifício de inocentes para salvar a alma de pecadores aos atos mais bárbaros para provar masculinidade e coragem. Contudo, o mais interessante disso, é o amoralismo de Glauber ao mostrar que todos são “bons” e “maus” ao mesmo tempo, trabalhando a intensa dualidade do ser humano. Não há mocinhos nem vilões, apenas figuras metafóricas de Deus (como o São Sebastião), do Diabo (o cangaceiro Corisco), o suposto justiceiro Antônio das Mortes (que leva a libertação de todos através da morte) e o povo brasileiro, representado por Manoel, que passa por todas as provações em busca de alguma perspectiva de vida.
A universalidade do tema está na crise social do país, dominado pela pobreza, fome e miséria e descaso do Estado com os problemas sociais, e ainda no relato da história de um entre os milhões de sertanejos que não “vivem” mas “sobrevivem”, adaptando-se a todas as situações e enfrentando as adversidades como pode.
Numa espécie de antropofagia cultural, o cineasta assimila de forma crítica as características do movimento internacional de cinema e as transforma em algo genuinamente brasileiro, ou melhor, regional, ao desenvolver a história no sertão nordestino fazendo referências à Guerra de Canudos e ao Movimento cangaceiro de Lampião, bem como a utilização da literatura de cordel na trilha sonora, valorizando a história e a tradição cultural nordestina.
Por fim, a obra de Glauber Rocha contempla aspectos estéticos e culturais de forma brilhante e atemporal, apesar de fazer parte de um momento específico do Cinema Novo e abordar a temática rural, os problemas sociais abordados - como a pobreza, a miséria, a violência, descaso do Estado e a alienação religiosa - ainda perduram, não só no sertão nordestino, e o povo brasileiro continua “sobrevivendo” como pode às condições adversas da realidade desse país.




segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Dogville e a desumanização da humanidade

Escrito por Diego Santos
Abre-se a cortina.
Estados Unidos. Época da grande depressão americana. Desesperança. Miséria. Cidade bucólica e provinciana acolhe uma fugitiva. Os bons cidadãos recebem-na tão bem que o clássico mito do Fugere Urbem se materializa. A fugitiva vê, no pequeno vilarejo, a chance de encontrar saída para a frieza e para o individualismo que dominam as grandes cidades. Em retribuição a tanta gentileza, passa a prestar pequenos serviços para as boas pessoas da chamada Dogville.
As buscas pela moça se intensificam. Os cidadãos passam a “cobrar” esse adicional de perigo que a presença da intrusa lhes impõe. Dogville crava seus dentes na forasteira. Exploração. Abuso. Prisão. As máscaras caem, a moça torna-se objeto nas mãos de seus benevolentes exploradores. Traições. Individualismo. Pecado. A cidade revela-se aos olhos da intrusa.
Vingança. A cidade morre aos olhos da boa fugitiva e da lua vermelha que ilumina o palco.
Fecha-se a cortina.


Assim pode ser resumido, de maneira bastante superficial, o épico enredo de Dogville - filme dirigido pelo dinamarquês Lars Von Trier - que narra a árida passagem de Grace (Nicole Kidman) por Dogville, uma cidade no Estados Unidos que, como qualquer outra, se mostra um espaço propício para a realização do sonho americano da vida harmônica e puritana em coletividade, mas que, posteriormente, revela-se um império de hostilidade para com o forasteiro, vítima do individualismo e da torpeza de seus “bons cidadãos”.

Forma - A estética empregada nesse longa metragem talvez seja o que, a priori, mas chame a atenção do telespectador. Conhecido por alguns como filme sem cenários, Dogville foi todo realizado em um espaço que visa recriar o ambiente teatral, no qual elementos de cenografia quase não existem. Com exceção da alguns objetos, tudo é representado por meio de marcações no chão do “palco”.
Por exemplo, palavras como “cachorro” e “arbustos”, escritas com tinta branca no chão, sugerem ao público e aos atores que ali estão esses referidos objetos, o que gera, em alguns momentos, cenas um tanto cômicas (como naquelas em que Grace bate no ar simulando bater em portas que não existem), bem como potencializam o caráter grotesco de certas cenas (pela ausência de paredes, quando Grace é estuprada pela primeira vez, todos os outro personagens parecem indiferentes ou alheios ao sofrimento da personagem, justamente por não haver nada que escondesse aquele crime, pareciam testemunhas condescendentes com o abuso).
Essa referência ao teatro não se limita somente as questões da estética dos cenários, a própria forma como a história é dividida (em capítulos e com um prólogo) e as técnicas de iluminação, também reforçam essa semelhança. Além disso, esse filme recebeu bastante influência do teatro épico de Bertolt Brecht, seja pelo distanciamento que se cria entre atores e o público, o que permite uma análise mais crítica e menos emocional do tema tratado; seja pela abordagem crítica dos conflitos sociais; ou também, pela presença de um narrador e da estrutura de prólogo, que nos dá certas orientações sobre o filme.
O que Brecht intuía com seu teatro era permitir uma reflexão crítica sobre a situação apresentada em sua obra, sempre remetendo a idéia de que aquilo era ficcional e, por isso, não devíamos nos deixar levar por sentimentalismos e análises subjetivas, o que comprometeria nossa complexificação do tema, ou seja, ele propunha uma arte engajada, que não servisse para embarcar os telespectadores em ilusões e misticismos, mas sim que permitisse desmistificar sua realidade, na construção de uma crítica social.
Essa crítica social faz-se presente no filme de Lars na desconstrução da imagem idealizada e ilusória que temos sobre a perfeição da sociedade americana, que seria a terra das oportunidades e da ascensão pessoal. Ele quer mostra ao telespectador, sem ilusões ou efeitos especias, assim como Brecht, toda a corrupção de valores e o individualismo da alma humana. É com uma certa crueza, e até, crueldade que ele acaba por instigar/provocar o telespectador, dando um soco no estômago da sociedade contemporânea.
Essa busca pelo não ilusionismo do cinema remete a um estilo cinematográfico criado pelo próprio Lars, em conjunto com o cineasta Thomas Vinterberg, chamado Dogma 95. Contudo, esse filme não segue a risca os paradigmas do Dogma, não sendo classificado, embora alguns assim o pensem, como filme dessa escola. Por exemplo, o Dogma obriga os filmes a não terem passagens temporais, a não usar iluminação artificial, o que acontece em Dogville.

Conteúdo - E, em meio a essa mistura de teatro e literatura, ficção e crítica à realidade, que de se constrói em Dogville uma série de alegorias sobre a dominação, o individualismo, a intolerância, ou seja, o mal estar das relações pessoa com pessoa (e pessoa versus pessoa) da sociedade capitalista contemporânea.
A subversão da imagem dos cidadãos de Dogville, que se desnuda a Grace no ato final, revela todo um sistema de artificialidade e aparência da atualidade, na qual se valoriza as máscaras e aquilo que se aparenta no ambiente social. Tanto que todos os habitantes buscam esconder seus ímpetos pecaminosos sob a imagem de “bons cidadãos”, como: nas reuniões onde se diz que todos são iguais e livres na cidade, mas segundos depois, se reprime a opinião de um dos moradores; na cena em que o transportador estupra Grace dizendo que isso era para poder transportá-la em segurança; na inveja mascarada de indiferença que Liz Henson tem em relação a Grace; ou mesmo na metáfora fortíssima que existe no orgulho do cego em jamais admitir que não pode enxergar mais.
Todos agem sob uma premissa de caridade que reforçaria o senso de benevolência dos cidadãos, mas, progressivamente, mostra-se que tudo não passava da busca pela satisfação de interesses pessoais, numa evidente alusão ao embate entre individualismo e vida coletiva.
Vê-se também um profundo ataque à hipocrisia dos cidadãos que, eram tão incapazes de se analisarem enquanto opressores, que nunca viam aquilo que faziam a Grace como algo mal, sempre justificando como: “isso é uma lição ao que ela mesma procurou”, ou “isso é para o bem dela”.
Ainda é possível fazer correlações com o tema de dominação do homem sobre o próprio homem e as relações de poder que se instituem nessas relações, afinal, os “bons cidadãos” passam a explorar Grace justamente porque tomam conhecimento de que tem algo em mãos para subjugá-la (a denúncia da fugitiva à polícia) e, por essa micro esfera de poder que se institui, Grace passa a ser escravizada, num regime de alheamento de seu ser, transformando-se em objeto, inclusive sexual, nas mãos dos habitantes da cidade.
Depreende-se do filme, também, uma crítica aos pensadores e aos intelectuais, afinal, o filósofo local (Thomas Edison Jr.) busca se distanciar do seu locus de pesquisa para poder trabalhar na formulação de conceitos e produção teórica, mas isso acaba fazendo com que não consiga saber como proceder na vida prática (distanciamento entre práxis e a teoria), acabando por ser conivente com a desgraça de Grace, ou seja, o ensinamento teórico, distante da sociedade, acaba por torna-se inócuo.
Em suma, Dogville é uma grande alegoria, ou melhor, palco, que nos leva a situações limites das mazelas humanas, onde a segregação daquilo que me é estranho ou diferente, o moralismo, a hipocrisia, a vingança privada, desfilam sublimes entre a humanidade, que, na verdade, é a legítima “vila dos cachorros”, tanto que não achamos errado que todos sejam mortos ao fim da história, pois nos sentimos vingados pela sôfrega personagem.
Não será isso uma prova da total subversão dos valores morais na contemporaneidade?

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Encontros e Desencontros (Lost in Traslantion) - E o paradoxo de estar sozinho na multidão

Escrito por Diego Santos e Josi Mendes

A cineasta americana Sofia Coppola, filha do conceituado Francis Ford Coppola, tece, em seu segundo longa - “Encontros e Desencontros” (Lost in Traslation) - histórias que entremeiam dramas pós-modernos, como a solidão e a sensação de não pertencimento a lugar nenhum, com situações cômicas, como o choque cultural e o frenesi do Japão contemporâneo.
Os protagonistas do filme são Bob Harris ( Bill Murray) e Charlotte (Scarlett Johansson), dois americanos que se vêem obrigados a passar uma semana no Japão - ele por trabalho, ela para acompanhar o marido - sendo que não conseguem compreender e nem se adaptar à cultura japonesa, sobretudo à língua, reforçando a idéia do deslocamento cultural e a sensação que ambos já carregam em si: de estarem sozinhos na multidão. Numa espécie de desencontro consigo mesmo.
Ambos são envoltos, nas primeiras seqüências do longa, por uma causticante sensação de tédio, que captura o telespectador, de tal maneira, que se tem a impressão que o tempo não passa ou que os protagonistas já estão há meses no Japão.
Esse tédio, aliado à ausência de algo lhes pareça familiar, acaba por aproximá-los (representado, no filme, por uma rápida troca de olhares no bar do hotel), e, a partir desse encontro, começam a desenvolver uma ambígua e descontraída relação, na qual amizade e amor acabam se confundindo.
A dualidade de sentimentos é tamanha quem nenhum dos dois consegue definir o que sente, numa confusão que mistura, por exemplo, ciúme (como na cena no restaurante na qual Charlotte está evidentemente enciumada por Bob ter dormido com outra mulher) e relação de proteção entre um pai e uma filha (ilustrado pela tomada em que dormem na mesma cama, Charlotte em posição fetal e Bob em uma posição como se quisesse mostrar força e capacidade para defendê-la).
Na verdade, o que Sofia quer não é narrar mais uma história de amor açucarada, e este é seu trunfo. Ela aproxima seus personagens com o intuito de um trazer aquilo que falta no outro, numa complementaridade de sentimentos e angústias. Isso é tão marcante que nunca se sabe se eles têm uma profunda amizade despretensiosa e fraternal ou se nutrem, de fato, amor “de um homem por uma mulher”. Ou seja, Sofia traz à tona aquilo que há muito se sabe: ninguém consegue se estabelecer como um ser humano sozinho.
Sofia retrata, também, problemas universais da humanidade, que atingem pessoas independentemente da idade, sexo... Para isso, se vale da construção desses dois personagens aparentemente tão diferentes - um homem maduro e uma jovem recém-casada - que sofrem dos mesmos males: a solidão e a incomunicabilidade, que acabam por desestabilizar suas relações interpessoais, inclusive no que diz respeito ao ambiente conjugal.
Essa solidão e a incomunicabilidade são metaforizadas pela diretora através da própria cidade/cenário do filme – Tóquio - lugar onde os personagens vivem em meio à loucura e a intensa movimentação do povo japonês e, mesmo assim, não se sentem confortados, sobretudo pela sensação de desterro e impotência em face da incompreensível língua - elemento fundamental para sensação de pertencimento a um povo e elo essencial para o estabelecimento das relações entre os homens (lembremos da história da Torre de Babel).
Mas é importante ressaltar que os dramas dos personagens não surgem somente em função da cidade ou da língua, isso é apenas uma metáfora que a diretora utiliza para exteriorizar aquilo que Charlotte e Bob já tinham internalizados em si, ou seja, ela se vale da ambiência exterior para retratar o que ambos já carregavam: confusão, solidão, tédio, dramas sentimentais, impessoalidade, indiferença, etc. Exemplo disso são as cenas em que ela constrói situações em que podemos sem incomunicáveis mesmo quando falamos a mesma língua, vide as “conversas” entre Charlotte e seu marido ou entre Bob e a esposa, nas quais o ouvir não é praticado.
À parte dessas análises dos sentimentos e relações humanas, Sofia aborda a problemática do globalismo cultural, ao mostrar um Japão que cada vez mais se ocidentaliza e, ao mesmo tempo, luta por manter suas tradições e costumes (cena dos prédios multicoloridos de Tóquio/ cenas do templo em Kyoto, por exemplo). Além disso, a própria questão do hibridismo cultural é retratada, pois se mostra uma fusão entre tradições e hábitos novos e velhos, que coabitam o mesmo espaço de modo a fundirem-se e criarem uma terceira coisa, como propunha Nestor Clanclini (exemplo: cena em que o jovem de Tóquio brinca num vídeo game que mistura os clássico tambores japonês com a tecnologia contemporânea).
Vê-se, também, nessa seara de tradição e contempoaneidade, entre resistência e homogeneização, a existência de dois tipos de mulheres japonesas: aquela cativa às antigas tradições (mulher do templo de Kyoto) e a japonesa moderna e liberal (striper do bar).
Enfim, o filme do Sofia é, evidentemente, um tratado sobre conflitos e feridas contemporâneas, regido pelo estranho paradoxo de se fazer parte de uma aldeia global que aproxima e isola a todos ao mesmo tempo, num eterno fluxo de encontros e desencontros.





Réquiem para um Sonho - do céu ao inferno em 102 minutos

Escrito por Diego Santos
“Réquiem para um sonho”, filme norte americano dirigido por Darren Aronofsky, se já não tivesse esse título que já lhe é tão revelador e apropriado, poderia se chamar, muito bem, “Decadência de um sonho” ou, ironicamente, “Quando a ação irrefreável da vida aniquila até seu últimos desejos” ou mesmo “A falsa felicidade construída pelos vícios”, todos nomes que remetem a temas recorrentes nesse longa, permeado, nos seus quase 102 minutos, de um pessimismo que corrói os sonhos e as esperanças dos personagens e, por tabela, consome o próprio ( e desavisado) telespectador, que sem saber o que virá, embarca numa sensação aflitiva de perceber que o amanhã (embora levianamente sempre acreditemos) não é obrigatoriamente tão esperançoso e que os vícios humanos, que trazem felicidades tão frágeis e momentâneas, acabam por degenerar aquilo que temos de mais precioso: o sonho.
O filme gira em torno da história de quatro viciados: Sarah Goldfarb (dona de casa solitária que se vê mergulhada nos dilemas do envelhecimento e da solidão humana. É mãe de Harold, o protagonista); Harold Goldfarb (também chamado de Harry, busca ascensão na vida através de meios ilícitos – tráfico de drogas. Viciado em cocaína, ele tem um romance com Marion);Tyrone C. Love ( amigo de Harry.É traficante e possui um relação edipiana com sua já falecida mãe); e Marion Silver (filha de pais ricos que, no entanto, entrega-se a um mundo de promiscuidade e vício em cocaína).Todos eles iniciam a história cheios de esperanças e sonhos, que são os fatores motivadores de todas suas ações no decorrer do longa, mesmo quando essas são o vício pelas drogas, o roubo e a prostituição.
Emblematicamente, o diretor separa o enredo em três estações do ano - verão, outono e inverno – com o intuito de, metaforicamente, fazer uma relação entre aquilo que acontece na vida dos personagens e as mudanças naturais da arrebatadora vida. A trajetória de Sarah, Marion, Harry e Tyrone confundem-se simbioticamente com o tempo natural, de modo, que suas vidas ascendem e decaem assim como o clima ascende e decai.


Verão dos sonhos e vícios

Desse modo, o início do filme é retratado como o verão, estação luminosa, quando os sonhos nascem. Período propício para felicidade, repleto de esperança, tal qual encontram-se os personagens.
Nessa época, Sarah, viciada em programas de televisão, é convidada para participar de um de um show de TV que, além de ser um misto de culto, auto-ajuda e promoção dos vencedores, prega o que somos obrigados a acreditar, que na vida temos duas escolhas: somos perdedores ou vencedores.Contudo, para ela, esse é o momento áureo de sua apática existência, uma forma de recuperar aquela felicidade idealizada que perdera no passado.Tanto que diz: “Agora eu olho para o sol e posso sorrir de novo”.
A partir desse convite, sua maior vontade é emagrecer para poder caber em um vestido vermelho e, assim, aparecer perfeita no programa, do modo que passa a se submeter a rígidas dietas e, posteriormente, a um tratamento com anfetaminas, estimulantes e tranqüilizantes, que acabam por enredá-la num ciclo de vicio, paranóia e obsessão.
Nessa estação, Marion e Harry, são retratados como os típicos rebeldes sem causa da sociedade (ela, uma jovem rica que, embora tenha “tudo”, entrega-se ao submundo e Harry que, embora tenha uma mãe amorosa - capaz de fazer tudo pelo filho - renega os valores familiares). O sonho de verão desse casal é sublimar todos os seus traumas familiares e constituir uma relação amorosa consolidada, uma vez que um considera o outro o grande amor de suas vidas.
Para concretizarem tão nobre anseio, Harry sugere a Marion que construam uma loja de roupas, pois a garota apresenta enorme talento para design. No entanto, nenhum deles se incomoda que, para alcançar tão objetivo, tenham que recorrer a atos escusos e se entregar aos vícios, o que, posteriormente, acaba por uma pá de cal em suas ínfimas esperanças. (Harry começa a traficar drogas. Marion, precisando de dinheiro para seu amado continuar o negócio, transa com seu psiquiatra que condiciona o empréstimo a uma noite de amor com ela. Entrecortando esses momentos, ainda há intensas sessões de consumo de drogas).
Tyrone tem apenas um sonho/esperança: vencer na vida para honrar uma promessa que fizera na infância para sua mãe. No entanto, para obter tal resultado, assim com Marion e Harry, não vê nenhum problema em recorrer a métodos escusos, como o tráfico de drogas.
Assim como os demais, esse personagem possui um vício, entretanto, embora erroneamente se pense, esse não são as drogas, embora as consuma costumeiramente. Na verdade, pode-se sugerir que seu “grande vício” está ligado a uma espécie de perversão sexual que tem, materializada na obsessão que nutre pela mãe, a ponto de procurar parceiras sexuais que se assemelhem a ela, pois, como mostra uma cena do filme: a atriz desnuda na cama pergunta no que ele está pensando, ele responde que está pensando nela, no entanto está pensando em uma cena da infância em que ele, nos braços de sua mãe, diz que vencerá na vida por ela, recebendo como resposta o seguinte: “não precisa querido, basta apenas amar sua mãe”.Depois do fim desse devaneio do passado, ele retorna a sua namorada e começa a consumar o ato sexual com ela.
Toda essa seqüência, que mistura devaneios passados e o presente, o ato sexual e o pedido da mãe para que o ame, além de diversas outras atitudes desse personagem (Tyrone) no decorrer do filme, nos induzem a acreditar que ele possui, como afirma Freud, uma relação edipiana mal resolvida em relação a sua mãe. Isso porque, o pai da psicanálise afirma que quando crianças, nós somos induzidos, por nosso inconsciente, a termos um dos pais como objeto de amor. Contudo, ele afirma que isso é uma fase, de modo que chegaria um período em que naturalmente seriamos obrigados a abdicar desse primeiro objeto de desejo para nos relacionarmos com outras pessoas, o que seria motivado pelo medo da castração.
Portanto, Tyrone por relacionar a relação que tinha com sua mãe às relações libidinosas que tem com mulheres no presente, pode representar tanto o anseio de querer encontrar alguém idêntica a sua mãe, quanto uma relação incestuosa que esse possui por sua genitora, que é a grande motivadora de seu sonho: vencer na vida.


“The Fall”

Entretanto, continuando a metáfora entre estações e ascensão/decadência, logo vem o outono, e a felicidade que cada um experimentou na estação anterior começa a despencar como as folhas das árvores dessa estação. Em inglês, essa metáfora é mais evidente, pois outono nessa língua é o termo “fall”, que é uma palavra que também pode ser traduzida como “queda”, reforçando essa idéia de decadência.
Nessa estação, Sarah, ainda motivada pela vontade de emagrecer para aparecer na tv e, com isso, sair da mediocridade que, segundo ela, seu isolamento e a velhice impõe, começa a perder o controle de seu vício por anfetaminas, começando a exceder a dose indicada pelo médico e mesmo começando a comer as pílulas para substituir as refeições.
Agitada e em estado de extremo vício e alteração, Sarah começa a ter visões alucinógenas que envolvem seus algozes: a geladeira de sua casa e a sua própria imagem, contudo, não a imagem da Sarah real, mas sim a Sarah perfeita, aquela que é construída sob as lentes da fantasiosa TV. A personagem começa a imaginar que a geladeira quer atacá-la. Paranóia e obsessão começam a tomar conta de seu ser, chegando a ponto de uma noite, a mulher perfeita da TV se materializar em sua sala, coagindo-a, humilhando-a, mostrando toda sua fraqueza e incapacidade perante os valores e ideais perfeitos da televisão.
A ação do outono também pesa sobre os outros personagens, o negócio de drogas que Harry desenvolveu com Tyrone durante o verão começa a desandar em função da falta de mercadoria. Tyrone é preso. O dinheiro acumulado até então vai se esgotando, o que obriga Marion a se prostituir para seu psiquiatra para que ele lhe empreste dinheiro. Harry e Marion afundam cada vez mais nas drogas, brigas constantes fazem começar a ruir seus sonhos de amor perfeito.


Inverno: para que um sonho termine, basta ter começado.

Até que chega o inverno, estação que traz consigo o desfecho trágico para cada um dos personagens: a aniquilação total de seus pueris desejos, sonhos e esperanças.
Sarah, em estado de plena alucinação, finalmente é consumida por sua paranóia, fato que é teatralmente marcado pela cena em que ela é literalmente engolida pela fonte de seu medo e martírio: a geladeira. A partir desse momento, deixa-se consumir por total delírio, passando a viver em um mundo onírico. Fica vagando sem rumo pelas ruas de Nova Iorque. Acaba internada em um hospital psiquiátrico, sendo submetidas a tratamentos desumanos e pior, nem percebendo isso, pois se tornou alienada de si mesma, só sentia a dor e sofria sozinha, sem saber o porquê de sofrer. Nesse momento o diretor faz uma crítica mordaz as relações individualistas e ao isolamento do homem pós-moderno, pois ninguém que atende Sarah realmente se preocupa em saber quem ela é ou o que tem, dando a ela tratamento estéril, frio, impessoal. Ninguém realmente se imposta em tratá-la, agindo como se fosse um objeto.
Marion possui uma discussão voraz com seu amado Harry,o que representa o fim de seu sonho de final feliz romântico.Depois de separados, pois Harry viaja junto com Tyrone até a Califórnia com o intuito de comprar drogas para continuar seu negócio, Marion, no auge de sua alucinação e vício, prostitui-se para conseguir drogas.Seu anseio por uma realidade aparente, uma felicidade pré-moldada e momentânea, que a tire do mundo que está desmoronado (sem família, sem amor) a faz, como ela própria diz em certo momento do filme, “ir ao inferno”.
Durante a viagem, Tyrone e Harry também vislumbram o ato final de seu sonho. Enquanto o segundo vê um problema em seu braço, causado pelo consumo de cocaína, agravar, o que culmina com a amputação do membro gangrenado no final catastrófico do filme, Tyrone acaba preso por tráfico de drogas, terminado seus dias numa penitenciária, submetido a humilhações e constantemente desejando voltar a infância, para a proteção que tinha nos braços de sua mãe.
Em suma, o inverno só vem reafirmar aquilo que o próprio titulo sugere: “Para que um sonho termine, basta ter começado”.Portanto, não é estranho classificar o filme de Darren Aronofsky como grande espetáculo de ascensão e queda de um sonho, onde nem a renovação é permitida para os sonhadores viciados e perdidos em seus devaneios fúteis.Como prova máxima disso temos a ausência da primavera, o que evidencia a falta de chances de se regenerar e de se retomar o sonho morto.
Sem perdão para os pecadores.


Temas transversais:

Um dos temas transversais é a questão do isolamento humano pós-moderno, tão tratado pelos pensadores contemporâneos que afirmam que a cada dia o ser humano se torna mais individualista - atomizado - tanto que todos os protagonistas sofrem por solidão (Sarah da família, Tyrone da mãe). Mesmo o casal do filme, no final, incorpora esse espírito individualista, que obriga a ambos, para fazer prevalecer seus sonhos e vontades individuais, tomarem caminhos distintos.
Outra temática é abordada através de uma alegoria presente na cena final do filme: todos os personagens deitam-se e buscam ficar em posição fetal, o que, possivelmente, pode representar uma tentativa de voltar para a fase inicial, quando ainda não fomos corrompidos pelas influências do meio. Fase distante de desilusões e desesperanças, o que pode remeter justamente a idéia behaviorista do comportamento do homem sendo determinado pelo meio, tanto que a fase fetal seria a fase anterior a essa influência, ou como dizia Rousseau: “o homem não nasce nem bom nem mal, o meio o corrompe”.
E, por fim, ainda trata-se de problemáticas da comunicação social no que concerne a relação de Sarah com a TV. Essa personagem é viciada em um mesmo programa que estabelece uma espécie de relação hipnótica com o telespectador, mostrando as mesmas mensagens otimistas e de alto teor de alto ajuda, o que pode nos lembrar como os meios de comunicação podem funcionar como instrumentos de alienação das massas.

Sarah fica absorta em seu mundo de fantasia televisiva, é por ele que se droga, é por ele que acaba paranóica, é por ele que acaba morrendo para o mundo e tornado-se alheia a si própria. Acaba por viver numa aparente realidade, revelada, sobretudo, na cena final, em que se refestela na cama, feliz, sonhando com o programa, enquanto suas amigas choram, abraçadas sob a neve, depois de tomarem ciência de seu estado deplorável (real x imaginário).
Nesse ponto que se abre o leque para discussão da sensação hiper-realidade que os meios de comunicação nos permitem ter. Parece que tudo na TV é melhor, que tudo é perfeito e, em busca desse ideal inalcançável de beleza e perfeição, é que se desenvolvem neuroses, paranóias e obsessões, como metaforicamente mostra-se através da vida de Sarah Goldfarb.