segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Dogville e a desumanização da humanidade

Escrito por Diego Santos
Abre-se a cortina.
Estados Unidos. Época da grande depressão americana. Desesperança. Miséria. Cidade bucólica e provinciana acolhe uma fugitiva. Os bons cidadãos recebem-na tão bem que o clássico mito do Fugere Urbem se materializa. A fugitiva vê, no pequeno vilarejo, a chance de encontrar saída para a frieza e para o individualismo que dominam as grandes cidades. Em retribuição a tanta gentileza, passa a prestar pequenos serviços para as boas pessoas da chamada Dogville.
As buscas pela moça se intensificam. Os cidadãos passam a “cobrar” esse adicional de perigo que a presença da intrusa lhes impõe. Dogville crava seus dentes na forasteira. Exploração. Abuso. Prisão. As máscaras caem, a moça torna-se objeto nas mãos de seus benevolentes exploradores. Traições. Individualismo. Pecado. A cidade revela-se aos olhos da intrusa.
Vingança. A cidade morre aos olhos da boa fugitiva e da lua vermelha que ilumina o palco.
Fecha-se a cortina.


Assim pode ser resumido, de maneira bastante superficial, o épico enredo de Dogville - filme dirigido pelo dinamarquês Lars Von Trier - que narra a árida passagem de Grace (Nicole Kidman) por Dogville, uma cidade no Estados Unidos que, como qualquer outra, se mostra um espaço propício para a realização do sonho americano da vida harmônica e puritana em coletividade, mas que, posteriormente, revela-se um império de hostilidade para com o forasteiro, vítima do individualismo e da torpeza de seus “bons cidadãos”.

Forma - A estética empregada nesse longa metragem talvez seja o que, a priori, mas chame a atenção do telespectador. Conhecido por alguns como filme sem cenários, Dogville foi todo realizado em um espaço que visa recriar o ambiente teatral, no qual elementos de cenografia quase não existem. Com exceção da alguns objetos, tudo é representado por meio de marcações no chão do “palco”.
Por exemplo, palavras como “cachorro” e “arbustos”, escritas com tinta branca no chão, sugerem ao público e aos atores que ali estão esses referidos objetos, o que gera, em alguns momentos, cenas um tanto cômicas (como naquelas em que Grace bate no ar simulando bater em portas que não existem), bem como potencializam o caráter grotesco de certas cenas (pela ausência de paredes, quando Grace é estuprada pela primeira vez, todos os outro personagens parecem indiferentes ou alheios ao sofrimento da personagem, justamente por não haver nada que escondesse aquele crime, pareciam testemunhas condescendentes com o abuso).
Essa referência ao teatro não se limita somente as questões da estética dos cenários, a própria forma como a história é dividida (em capítulos e com um prólogo) e as técnicas de iluminação, também reforçam essa semelhança. Além disso, esse filme recebeu bastante influência do teatro épico de Bertolt Brecht, seja pelo distanciamento que se cria entre atores e o público, o que permite uma análise mais crítica e menos emocional do tema tratado; seja pela abordagem crítica dos conflitos sociais; ou também, pela presença de um narrador e da estrutura de prólogo, que nos dá certas orientações sobre o filme.
O que Brecht intuía com seu teatro era permitir uma reflexão crítica sobre a situação apresentada em sua obra, sempre remetendo a idéia de que aquilo era ficcional e, por isso, não devíamos nos deixar levar por sentimentalismos e análises subjetivas, o que comprometeria nossa complexificação do tema, ou seja, ele propunha uma arte engajada, que não servisse para embarcar os telespectadores em ilusões e misticismos, mas sim que permitisse desmistificar sua realidade, na construção de uma crítica social.
Essa crítica social faz-se presente no filme de Lars na desconstrução da imagem idealizada e ilusória que temos sobre a perfeição da sociedade americana, que seria a terra das oportunidades e da ascensão pessoal. Ele quer mostra ao telespectador, sem ilusões ou efeitos especias, assim como Brecht, toda a corrupção de valores e o individualismo da alma humana. É com uma certa crueza, e até, crueldade que ele acaba por instigar/provocar o telespectador, dando um soco no estômago da sociedade contemporânea.
Essa busca pelo não ilusionismo do cinema remete a um estilo cinematográfico criado pelo próprio Lars, em conjunto com o cineasta Thomas Vinterberg, chamado Dogma 95. Contudo, esse filme não segue a risca os paradigmas do Dogma, não sendo classificado, embora alguns assim o pensem, como filme dessa escola. Por exemplo, o Dogma obriga os filmes a não terem passagens temporais, a não usar iluminação artificial, o que acontece em Dogville.

Conteúdo - E, em meio a essa mistura de teatro e literatura, ficção e crítica à realidade, que de se constrói em Dogville uma série de alegorias sobre a dominação, o individualismo, a intolerância, ou seja, o mal estar das relações pessoa com pessoa (e pessoa versus pessoa) da sociedade capitalista contemporânea.
A subversão da imagem dos cidadãos de Dogville, que se desnuda a Grace no ato final, revela todo um sistema de artificialidade e aparência da atualidade, na qual se valoriza as máscaras e aquilo que se aparenta no ambiente social. Tanto que todos os habitantes buscam esconder seus ímpetos pecaminosos sob a imagem de “bons cidadãos”, como: nas reuniões onde se diz que todos são iguais e livres na cidade, mas segundos depois, se reprime a opinião de um dos moradores; na cena em que o transportador estupra Grace dizendo que isso era para poder transportá-la em segurança; na inveja mascarada de indiferença que Liz Henson tem em relação a Grace; ou mesmo na metáfora fortíssima que existe no orgulho do cego em jamais admitir que não pode enxergar mais.
Todos agem sob uma premissa de caridade que reforçaria o senso de benevolência dos cidadãos, mas, progressivamente, mostra-se que tudo não passava da busca pela satisfação de interesses pessoais, numa evidente alusão ao embate entre individualismo e vida coletiva.
Vê-se também um profundo ataque à hipocrisia dos cidadãos que, eram tão incapazes de se analisarem enquanto opressores, que nunca viam aquilo que faziam a Grace como algo mal, sempre justificando como: “isso é uma lição ao que ela mesma procurou”, ou “isso é para o bem dela”.
Ainda é possível fazer correlações com o tema de dominação do homem sobre o próprio homem e as relações de poder que se instituem nessas relações, afinal, os “bons cidadãos” passam a explorar Grace justamente porque tomam conhecimento de que tem algo em mãos para subjugá-la (a denúncia da fugitiva à polícia) e, por essa micro esfera de poder que se institui, Grace passa a ser escravizada, num regime de alheamento de seu ser, transformando-se em objeto, inclusive sexual, nas mãos dos habitantes da cidade.
Depreende-se do filme, também, uma crítica aos pensadores e aos intelectuais, afinal, o filósofo local (Thomas Edison Jr.) busca se distanciar do seu locus de pesquisa para poder trabalhar na formulação de conceitos e produção teórica, mas isso acaba fazendo com que não consiga saber como proceder na vida prática (distanciamento entre práxis e a teoria), acabando por ser conivente com a desgraça de Grace, ou seja, o ensinamento teórico, distante da sociedade, acaba por torna-se inócuo.
Em suma, Dogville é uma grande alegoria, ou melhor, palco, que nos leva a situações limites das mazelas humanas, onde a segregação daquilo que me é estranho ou diferente, o moralismo, a hipocrisia, a vingança privada, desfilam sublimes entre a humanidade, que, na verdade, é a legítima “vila dos cachorros”, tanto que não achamos errado que todos sejam mortos ao fim da história, pois nos sentimos vingados pela sôfrega personagem.
Não será isso uma prova da total subversão dos valores morais na contemporaneidade?

Um comentário:

ricardo.orsini@gmail.com disse...

Análise muito boa de um filme mal compreendido e muito mal analisado também.