quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Deus e o Diabo na terra do Sol: uma obra atemporal

Escrito por Josi Mendes

"Eu parti do texto poético. A origem de Deus e do Diabo é uma língua metafórica, a literatura do cordel. No Nordeste, os cegos, nos circos, nas feiras, nos teatros populares, começam a história cantando: eu vou lhes contar uma história que é de verdade e de imaginação ou então que é de imaginação verdadeira Toda a minha formação foi feita nesse clima. A idéia do filme me veio espontaneamente.”
(Glauber Rocha)

O longa metragem “Deus e o Diabo na terra do Sol” faz parte de um movimento da cinematografia nacional que surgiu no início da década de 60, denominado de “Cinema Novo”, do qual Glauber Rocha foi um dos precursores. Esse movimento, com um discurso crítico e ousado para a época, costuma ser resumido pela expressão “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” e representa uma das melhores épocas da produção cultural do país.
Como “Deus e o Diabo...” foi produzido anteriormente ao golpe militar no Brasil, ainda tratava das temáticas da realidade rural, como seca, fome, miséria, representando a primeira dentre as três fases do movimento: de 1960 a 1964, 1965 a 1967 e de 1968 a 1972.

Forma – Na obra, é evidente a influência de alguns movimentos cinematográficos - como a Nouvelle Vague francesa, que é contemporânea ao Cinema Novo Brasileiro - resultando, inclusive, na incorporação de certos valores estéticos, como as cenas que mesclam improviso e dinamismo. Além disso, o filme vale-se de uma linguagem própria (metafórica) e de uma leitura crítica da realidade.
As influências artísticas da dramaturgia brasileira da época, como o Teatro de Arena de São Paulo e o Teatro do Oprimido de Augusto Boal, também podem ser observadas, a exemplo da preferência por temas que incitem a reflexão sobre a realidade do país, além da escolha por cenas executadas de forma improvisada, com ritmo de peças teatrais e os movimentos típicos dessas encenações.

Conteúdo - O filme narra a saga do sertanejo Manoel (Geraldo Del Rey) e sua mulher Rosa (Yoná Magalhães) que levam uma vida sofrida no sertão brasileiro, terra desolada e marcada pela seca.
Na tentativa de mudar de vida, Manoel pretende partilhar com o Coronel Moraes, o lucro obtido com a venda de algumas cabeças gado, para que, dessa maneira, possa comprar um pedaço de terra. Porém, quando enquanto leva o gado para a cidade, alguns animais morrem, fazendo com que, no momento da partilha, Moraes diga que não vai dar nada ao sertanejo, porque o gado que morreu certamente era do pobre rapaz e o que havia sobrevivido era o seu. Desesperado, Manoel mata o ganancioso homem, volta para casa para buscar Rosa e acaba fugindo com ela, deixando tudo para trás.
Nessa fuga pelo sertão, o casal depara-se com vários seres que permeiam o imaginário sertanejo e, quiçá, o universal, como: São Sebastião (“Deus”) e Corisco (“Diabo”), ambos dominados por várias espécies de fanatismos, resultantes da loucura causada pela miséria, fome e seca do sertão. Até que, em determinado momento, encontram Antônio das Mortes, o “justiceiro” que levará a libertação a todos.
Glauber Rocha conduziu com muita originalidade esse filme, de temática aparentemente simples, ao contar a história de vida de um sertanejo envolvido pela miséria e fome do sertão que, sem qualquer expectativa de vida, fica literalmente entre a cruz e a espada (tão bem metaforizada na cena em que Corisco e Satanás estão assaltando a casa onde se realizava um casamento), entre “Deus” e o “Diabo”, evocando a alienação religiosa e a violência do movimento cangaceiro em que vive o povo do Sertão nordestino.
O fanatismo causado pelas condições adversas do sertão motiva, em todos os personagens, a prática das atitudes mais insanas, desde o sacrifício de inocentes para salvar a alma de pecadores aos atos mais bárbaros para provar masculinidade e coragem. Contudo, o mais interessante disso, é o amoralismo de Glauber ao mostrar que todos são “bons” e “maus” ao mesmo tempo, trabalhando a intensa dualidade do ser humano. Não há mocinhos nem vilões, apenas figuras metafóricas de Deus (como o São Sebastião), do Diabo (o cangaceiro Corisco), o suposto justiceiro Antônio das Mortes (que leva a libertação de todos através da morte) e o povo brasileiro, representado por Manoel, que passa por todas as provações em busca de alguma perspectiva de vida.
A universalidade do tema está na crise social do país, dominado pela pobreza, fome e miséria e descaso do Estado com os problemas sociais, e ainda no relato da história de um entre os milhões de sertanejos que não “vivem” mas “sobrevivem”, adaptando-se a todas as situações e enfrentando as adversidades como pode.
Numa espécie de antropofagia cultural, o cineasta assimila de forma crítica as características do movimento internacional de cinema e as transforma em algo genuinamente brasileiro, ou melhor, regional, ao desenvolver a história no sertão nordestino fazendo referências à Guerra de Canudos e ao Movimento cangaceiro de Lampião, bem como a utilização da literatura de cordel na trilha sonora, valorizando a história e a tradição cultural nordestina.
Por fim, a obra de Glauber Rocha contempla aspectos estéticos e culturais de forma brilhante e atemporal, apesar de fazer parte de um momento específico do Cinema Novo e abordar a temática rural, os problemas sociais abordados - como a pobreza, a miséria, a violência, descaso do Estado e a alienação religiosa - ainda perduram, não só no sertão nordestino, e o povo brasileiro continua “sobrevivendo” como pode às condições adversas da realidade desse país.




2 comentários:

Madame Poison disse...

É uma pena que obras assim fiquem relegadas ao tempo e à memória de poucos.

Unknown disse...

Muito bom o texto! Ajudou bastante a assimilar e interpretar os fatos.